Por Adriana Costa
Ouça ou leia, ou leia e ouça…
O conto fala de Irineo Funes, um rapaz que após um trágico acidente; passou a se lembrar de tudo, suas recordações complexas abarcavam a história de cada objeto e as sensações deles decorrentes a todo o momento. Ele podia reconstituir, com precisão, um dia inteiro, mas para isso levava todo um outro dia: “não apenas se recordava de cada folha de cada árvore de cada morro, mas ainda de cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado.
Dezenove anos tinha vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e assim também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois constatou que estava paralítico. O fato quase não o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora sua percepção e sua memória eram infalíveis.
Funes não era capaz de pensar, o próprio narrador o suspeitava:
Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.
Ele tinha uma quantidade imensa de informações em sua cabeça e pensar significava esquecer alguns detalhes. Funes sabia todas as minúcias, todos os detalhes, como uma máquina.
Funes discernia continuamente os avanços tranqüilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-llhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o rodeavam.
Esta importância do esquecimento para a vida é inspirada em Borges também pela leitura do filósofo Nietzsche, que compreendia que:
O esquecimento não é só uma vis inertiae, como crêem os espíritos superfinos; antes é um poder ativo, uma faculdade moderadora, à qual devemos o fato de que tudo quanto nos acontece na vida, tudo quanto absorvemos, se apresenta à nossa consciência durante o estado da “digestão” (que poderia chamar-se absorção física), do mesmo modo que o multíplice processo da assimilação corporal tão pouco fatiga a consciência. Fechar de quando em quando as portas e janelas da consciência, permanecer insensível às ruidosas lutas do mundo subterrâneo dos nossos órgãos; fazer silêncio e tábua rasa da nossa consciência, a fim de que aí haja lugar para as funções mais nobres para governar, para rever, para pressentir (porque o nosso organismo é uma verdadeira oligarquia): eis aqui, repito, o ofício desta faculdade ativa, desta vigilante guarda encarregada de manter a ordem física, a tranquilidade, a etiqueta. Donde se coligue que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum gozo presente poderiam existir sem a faculdade do esquecimento.
Borges em suas escritas sobre a relação memória/esquecimento coloca em xeque a autenticidade dos acontecimentos narrados, reafirmando que esquecer faz parte e que recordar, automaticamente, passa por uma seleção que leva em conta, a vontade. Nesse sentido, assim escreve:
Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz
Na narrativa do conto, os aspectos do esquecimento podem ser percebidos se compararmos o livro à nossa memória. Fazer recorte e selecionar, o que nesta pesquisa é traduzido em esquecer, são ações primordiais em qualquer criação humana; caso contrário, cai-se no absurdo de almejar a totalidade e isso leva, automaticamente, à falta de sentido, a insônia e a paralisia pelo excesso de controle. Assim, é na incompletude que encontramos lugar para o novo; é no esquecimento que encontramos espaço para a ressignificação das lembranças, pois ao rememorar, constituímos uma nova história e isso só é possível porque esquecemos partes, dando espaço para que outras sobressaiam.
Dica de leitura : Rodrigo Quian Quiroga é um especialista em neurociência , inspirado pelo conto de Funes investigou os neurônios e sua forma de funcionamento . Ao gerar memórias buscamos abstrair detalhes e extrair conceitos.
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