Por Marco Silva*
“Finalmente, o dispositivo interativo, ao suspender a lógica audiovisual, deixa também emergir progressivamente o fim da noção de receptor passivo. As novas navegações interativas serão, assim, uma nova libertação face à lógica unívoca do sistema mass-mediático predominante neste século XX. Doravante viveremos a superação desse constrangimento.”(CÁDIMA, 1996, p. 202)
Interatividade: dinâmica comunicacional da cibercultura
Assim como inspirou a inquietação dos apresentadores de TV, a interatividade pode despertar o interesse dos professores em buscar sintonia com a dinâmica comunicacional que ganha centralidade com o avanço da internet. Quando o digital e o social favorecem e demandam interatividade, temos a transição da cultura do audiovisual para a cibercultura ou cultura digital.
A TV alia-se à cibercultura quando atrela sua programação às redes sociais. A escola resiste fortalecida pela exclusão digital e pela inércia secular da cultura audiovisual, salvo raras iniciativas locais. Se a docência resistiu à televisão que opera na mesma lógica da transmissão, resistirá mais intensamente à cibercultura onde a interatividade alcança sua mais avançada expressão.
Sistemas midiáticos
Cultura audiovisual | Cibercultura, cultura digital |
Na cultura audiovisual a mídia de massa (impressos, rádio e tv) e a sala de aula estiveram confortavelmente situados na transmissão, na unidirecionalidade, onde a emissão tem o controle dos conteúdos (textos, áudios, imagens e vídeos) e dos processos de distribuição para a recepção. | Na cibercultura as mídias digitais (blogues, wikis, redes sociais online) ganharam fortíssima adesão social no planeta, operando não mais no esquema clássico da informação baseado na ligação unilateral emissor-mensagem-receptor. No lugar do espectador, emerge o interator em rede, em inteligência coletiva. |
A cibercultura envolve hábitos, comportamentos e mentalidades emergentes no cenário social e tecnológico baseado em computadores, tablets e smartphones conectados à internet. Sua dinâmica comunicacional libera e mobiliza a autoria e a colaboração em rede e, assim, desbanca a prevalência da transmissão unidirecional que separou emissão e recepção. (LÉVY, 1999; LEMOS; LÉVY, 2010; SILVA, 2014; SANTOS, 2019; LEMOS, 2021).
O termo interatividade emergiu a partir do contexto da “contracultura” e de sua crítica à mídia unidirecional, à sociedade dominada pelas tecnologias de informação, à opressão cada vez maior não apenas sobre a existência física das pessoas, mas também sobre o seu universo interior, o que se conseguia com a manipulação realizada pelos meios de informação. Virou moda a partir dos anos 1990, com a difusão do computador conectado à web (WWW) e suas múltiplas janelas em rede, que não se limitam à transmissão, que permitem ao usuário adentramento labiríntico, manipulação de conteúdos, interlocução e colaboração entre internautas.
Em nossos dias, mesmo ganhando maturidade teórica e técnica com o desenvolvimento da internet e dos games, o termo interatividade sofre banalização quando usado como “argumento de venda” em detrimento do prometido mais comunicacional. Basta ver a enxurrada de aplicações do termo, desde shampoo interativo, tênis interativo e escola interativa, nesse caso apenas por estar equipada com computador e internet e não por superar a centralidade da pedagogia da transmissão, da cultura audiovisual em favor da educação na cibercultura.
Vale a pena atentar para o sentido depurado do termo interatividade que encontra seus fundamentos na arte “participacionista” da década de 1960, definida como “obra aberta” por Umberto Eco. O “parangolé” do artista plástico Hélio Oiticica é um exemplo emblemático da arte interativa. Essa concepção artística antecipa a mobilização do participador e a disposição à interatividade. Mais especificamente, antecipa a ambiência comunicacional do cenário sociotécnico da cibercultura.
Cenário sociotécnico da cibercultura
Social | Tecnológico |
Há um novo espectador, menos passivo diante da mensagem mais aberta à sua intervenção. Ele migra da tela unidirecional da televisão para a tela tátil, imersiva e móvel do tablet e do smartphone em rede, que lhe permite adentramento, autoria, colaboração ou o gesto instaurador que cria e alimenta sua experiência comunicacional. | As telas do tablet, laptop e smartphone não são espaços de transmissão. São ambientes de imersão, manipulação e interlocução, com janelas, ícones e aplicativos móveis abertos a múltiplas conexões offline e online, que permitem intervenções e modificações autorais e colaborativas nos conteúdos e na comunicação. |
Em situação de interatividade, emissor e receptor mudam respectivamente de papel e de status, quando a mensagem se apresenta como conteúdos manipuláveis e não mais como emissão. (MARCHAND, 1987).
- O emissor não emite mais no sentido que se entende habitualmente. Ele não propõe mais uma mensagem fechada, ao contrário, oferece um leque de possibilidades, que ele coloca no mesmo nível, conferindo a elas um mesmo valor e um mesmo estatuto.
- O receptor não está mais em posição de recepção clássica. A mensagem só toma todo o seu significado sob a sua intervenção. Ele se torna de certa maneira criador.
- A mensagem que agora pode ser recomposta, reorganizada, modificada em permanência sob o impacto cruzado das intervenções do receptor e dos ditames do sistema, perde seu estatuto de mensagem ‘emitida’.
O parangolé de Oiticica antecipa essa mudança paradigmática em comunicação. Antecipa o conceito de tela digital. Não é plano de irradiação como no cinema, tv, quadro do artista na parede. É ambiente multidirecional de adentramento, autoria, interlocução e colaboração. O parangolé, analógico porque feito de tecidos, antecipou a natureza do digital que libera e mobiliza a autoria e colaboração do participador. A contracultura antecipou a cibercultura? Isso é o que veremos a seguir, para mais situar e inspirar a formação de professores para a docência presencial e online na cibercultura.
Interagir não é assistir
O parangolé rompe com o modelo comunicacional baseado na transmissão. Ele é pura proposição à participação ativa do “espectador” – termo que se torna inadequado, obsoleto. Trata-se de participação sensório-corporal e semântica e não de participação mecânica. Oiticica quer a intervenção física na obra de arte e não apenas contemplação imaginal separada da proposição. O fruidor da arte é solicitado à “completação” dos significados propostos no parangolé. E as proposições são abertas, o que significa convite à cocriação da obra. O indivíduo veste o parangolé que pode ser uma capa feita com camadas de panos coloridos que se revelam à medida que ele se movimenta correndo ou dançando.
O croqui e o parangolé vestido por Hélio Oiticica – 1965
Oiticica convida a participar do tempo da criação de sua obra e oferece entradas múltiplas e labirínticas que permitem a imersão e intervenção do “participador”, que nela inscreve sua emoção, sua intuição, seus anseios, seu gosto, sua imaginação, sua inteligência. Assim a obra requer “completação” e não simplesmente contemplação. Segundo o próprio Oiticica, “o participador lhe empresta os significados correspondentes. Algo é previsto pelo artista, mas as significações emprestadas são possibilidades suscitadas pela obra não previstas, incluindo a não-participação nas suas inúmeras possibilidades também”. (OITICICA, 1996).
Essa concepção de arte (ou “antiarte”, como preferia Oiticica), inconcebível fora da perspectiva da coautoria, tem algo a sugerir ao professor: mesmo estando adiante dos seus alunos no que concerne a conhecimentos específicos, propõe a aprendizagem na mesma perspectiva da coautoria que caracteriza o parangolé e a arte digital. O professor propõe o conhecimento. Não o transmite. Não o oferece à distância para a recepção audiovisual ou “bancária” (sedentária, passiva, espectadora), como criticava o educador Paulo Freire. (FREIRE, 1996).
A docência articula o espaço físico presencial com “ambientes virtuais de aprendizagem”, redes sociais, blogues, wikis e outros, em favor da construção do conhecimento e da formação. A docência e o desenho didático operam em favor da mobilização/liberação da autoria e da colaboração. Esse funcionamento da sala de aula híbrida articula “três fundamentos da interatividade” (MACHADO, 1997; SILVA, 2014):
- Participação-intervenção. A docência pressupõe a participação-intervenção do aprendiz. Participar é muito mais do que responder “sim” ou “não”, é muito mais do que escolher uma opção dada. Participar é modificar, é interferir na mensagem.
- Bidirecionalidade-hibridação. Comunicar pressupõe recursão da emissão e recepção. A comunicação é produção conjunta da emissão e da recepção. O emissor é receptor em potencial e o receptor é emissor em potencial. Os dois polos codificam e decodificam.
- Permutabilidade-potencialidade. O professor disponibiliza a possibilidade de múltiplas redes articulatórias. Ele não propõe uma mensagem fechada, ao contrário, oferece informação em redes de conexões permitindo ao receptor ampla liberdade de associação e significações, sem fugir do objetivo.
Cada professor, cada professora em sua especificidade disciplinar encontra nos fundamentos da interatividade a ambiência comunicacional capaz de contemplar a construção do desenho didático (arquitetura dos recursos e estratégias pedagógicos: conteúdos de aprendizagem, ambiência comunicacional de autoria e colaboração, atividades de avaliação etc.) e da mediação docente que superam a cultura do audiovisual.
Desafio comunicacional para os professores
Inspirado no parangolé, o professor propõe o conhecimento aos estudantes, como o artista propõe sua obra potencial ao público. Isso supõe modelar os domínios do conhecimento como espaços conceituais, onde os alunos podem construir seus próprios mapas e conduzir suas explorações, considerando os conteúdos como ponto de partida e não como ponto de chegada no processo de construção do conhecimento. A participação do estudante se inscreve nos estados potenciais do conhecimento arquitetados pelo professor de modo que evoluam em torno do núcleo preconcebido com coerência e continuidade. O estudante não está mais reduzido a olhar, ouvir, copiar e prestar contas. Ele cria, modifica, constrói, aumenta e, assim, torna-se coautor. Exatamente como no parangolé, em vez de se ter obra acabada, têm-se apenas seus elementos dispostos à manipulação ou como proposição à coautora.
O professor disponibiliza um campo de possibilidades, de caminhos que se abrem quando elementos são acionados pelos estudantes. Ele garante a possibilidade de significações livres e plurais e, sem perder de vista a coerência com sua opção crítica embutida na proposição. Coloca-se aberto a ampliações, a modificações vindas da parte deles. Uma pedagogia baseada nessa disposição à coautoria, à interatividade, requer a morte do professor narcisicamente investido do poder. Expor sua opção crítica à intervenção, à modificação, requer humildade. Mas, diga-se humildade e não fraqueza ou minimização da autoria, da vontade, da ousadia. Seja na sala de aula presencial equipada com telas digitais conectadas à Internet, seja no “ambiente virtual” da educação online, seja na sala de aula híbrida, o professor concebe o desenho didático e a mediação da docente não mais centrados na emissão, na transmissão ou na cultura do audiovisual.
Sala de aula interativa presencial e online
Desenho didáticoArquitetura de conteúdos, proposições e estratégias enredados com ambientes de autoria, interlocução e colaboração | Mediação docenteAtuação docente em favor da construção colaborativa da comunicação, do conhecimento e da formação humana. |
Predefinido e redefinido de forma colaborativa no processo do curso. Hipertextos e hipermídia multidirecionais ativados por tecnologias digitais móveis (laptop, smartphone, tablet e múltiplas interfaces como chats, fóruns, wiki, blogues, lives, redes sociais, mapas colaborativos, podcast, mensagens instantâneas e em grupo, webconferências etc.) para expressão individual e coletiva presencial e em rede. | O docente é um proponente do conhecimento e da formação em rede. Juntamente com os cursistas, promove a cocriação da comunicação, do conhecimento e da formação. Mobiliza a dinâmica todos-todos nos espaços físico e online (fóruns, wikis, chats, redes sociais webconferências etc.), sem perder o foco. Supõe a superação do professor narcisicamente investido do poder, baseado na oratória explicadora e voz de comando. |
Na cibercultura os atores da comunicação têm a interatividade e não mais a separação da emissão e recepção própria da mídia de massa e da “cultura da escrita”, quando autor e leitor não estão em interação direta. Assim o professor propõe o conhecimento à maneira do parangolé. Assim ele redimensiona a sua autoria: não mais a prevalência do falar-ditar do mestre, da distribuição, do audiovisual, mas a perspectiva da proposição complexa do conhecimento à participação ativa dos alunos que já aprenderam com o joystick do videogame e hoje aprendem, criam e colaboram na tela tátil em rede. Enfim, a responsabilidade de disseminar um outro modo de pensamento, de reinventar a docência e uma nova sala de aula, presencial e online, capaz de educar no cenário sociotécnico da cibercultura
Sabemos que o legado pedagógico do século XX – Dewey, Vygotsky, Freinet, Freire entre outros e outras –, que sustenta a crítica à sala de aula centrada na cultura audiovisual, está baseado em princípios da educação autêntica, como: autonomia, diversidade, interação, dialogia e democracia. Em seu tempo esse legado contava somente com a lógica audiovisual do impresso, cinema, rádio, tv, toca-discos, isto é, um cenário midiático incapaz de contemplar autoria, interlocução, rede, colaboração. Assim, podemos dizer: se Dewey, Vygotsky, Freinet, Freire estivessem vivos hoje e fossem incluídos ciberculturais, perceberiam que a dinâmica comunicacional da cibercultura favorece operar e potencializar o seu legado pedagógico. Estariam, muito provavelmente, valorizando a “educação baseada em aplicativos”. (SANTOS; PORTO, 2019).
Podemos dizer em suma: os clássicos da educação do século XX encontram sua atualidade no cenário sociotécnico do século XXI. Na cibercultura os professores têm o seu legado pedagógico, o social interator e a tecnologia digital em rede no mesmo paradigma comunicacional favorável à educação autêntica, cidadã. Faltará à formação para docência na cibercultura, o engajamento capaz de lançar mão desse tripé e com ele contemplar o espírito do nosso tempo na sala de aula presencial e online.
Referências
CÁDIMA, Rui F. História e crítica da comunicação. Lisboa: Ed. Século XXI, 1996.
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1976.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
LEMOS, André. A tecnologia é um vírus: pandemia e cultura digital. Porto Alegre: Sulina, 2021.
LEMOS, André; LÉVY, Pierre. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.
MARCHAND, Marie. Les Paradis Informationnels: Du Minitel Aux Services De Communication du Futur. Paris: Masson, 1987.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus Editora, 1997.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. (Seleção de textos). Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
PORTO, Cristiane; SANTOS, Edméa. (orgs.) APP-Education: fundamentos, contextos e práticas educativas luso-brasileiras na cibercultura. Salvador, Ba: EDUFBA, 2019.
SANTOS, Edméa. Pesquisa-formação na cibercultura. Teresina: EDUFPI, 2019.
SILVA, Marco. Sala de aula interativa. 7ª ed. São Paulo: Loyola, 2014.
* Marco Silva é Sociólogo, doutor em educação, professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor do livro Sala de aula interativa, de onde extraiu argumentos para novas tecituras que resultaram neste texto. [email protected].
(*) Foto de capa de Ana Paula Osório