Por Daniela Araújo e Tainara Cardoso*
Este texto foi escrito a quatro mãos por Daniela Araujo e Tainara Cardoso, que se colocaram a serviço de quinhentos corações de Jovens Comunicadores de diferentes favelas de Niterói e São Gonçalo, participantes da rede mobilizada por organizações locais. O texto foi construído em diálogo com cinco jovens, que se reuniram para partilhar suas histórias e estratégias de sobrevivência a partir da comunicação popular.
Ao convidar os jovens para participarem de uma roda de conversa para a construção deste artigo, trouxemos uma primeira questão básica: qual sua relação com a comunicação? que lugar ela ocupa na sua vida? Para nossa surpresa a conversa começou pela televisão e o pensamento consensual foi:
“é melhor lidar com a precariedade da internet e buscar brechas nas redes do que ver televisão. Ela, definitivamente, não nos representa”.
Comunicação – uma sequência de disputas
Em 28 de dezembro de 1895, quando os irmãos Lumière exibiram pela primeira vez um filme, que estava em criação numa linguagem poderosa e inimaginável até então, embora seja essa a primeira sessão com um público pagante, o cinema foi e continua sendo fruto do trabalho de muitas pessoas. Essa ainda é, na atualidade, uma narrativa em disputa pois sabe-se que outros experimentos foram realizados com sucesso no mesmo período. Na mesma década, em 1891, nos Estados Unidos, Thomas Edison inventou o Kinetógrafo, equipamento anterior a câmera e que permitia fazer pequenos filmes. O desenvolvimento do audiovisual, assim como os demais campos da comunicação, como o impresso, a radiodifusão e a internet, por exemplo, não foram apenas uma sucessão de desenvolvimentos tecnológicos, mas sim uma sequência de disputas.
Os suportes tecnológicos são parte de uma engrenagem que difundem e constroem ideias e posicionamentos, assim como ferramentas de construção de narrativas e subjetividades. Utilizada durante o período da Guerra Fria pela indústria de Hollywood, o cinema cumpriu o seu papel de ataque, onde essa nova arma foi usada em 1941, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. A pedido do governo dos Estados Unidos (EUA) foi criado o personagem Capitão América representante da ideologia norte americana, que foi difundida pelo mundo. Na primeira edição, o herói estapeia Adolf Hitler, líder do partido alemão nazista, apresentando a sua superioridade.
Na mesma linha em 1942 é criado o personagem “Zé Carioca”, com a finalidade de propagar a política da boa vizinhança e aproximação das nações americanas alinhadas aos EUA. Atualmente, ou seja, anos depois podemos e devemos nos interrogar: será mesmo que queremos ser o “papagaio maroto” e “boa praça”, malandro e cheio de ginga, que para tudo se esquiva sem questionar ou criar reflexões? Qual é o papel dos grandes meios de comunicação na manutenção das desigualdades? Como se apropriar dessa linguagem e criar estratégias polifônicas de comunicação?
Instaurada no Brasil desde 1950, a televisão está presente em 97,2% dos lares, segundo a pesquisa IBGE divulgada pela Agência Brasileira de Comunicação (EBC)[1]. Num país onde 56% da população se declara negra (soma entre pretos e pardos, segundo categoria do IBGE 2019) as peças comerciais apresentam 75% de atores brancos e apenas 25% de outras etnias, como apontam os dados da pesquisa complementar e realizada pela agência de propaganda Head, que analisou 1.822 campanhas publicitárias veiculadas na televisão brasileira, assim como divulgados no site “Alma Preta”[2]. Infelizmente essa baixa representatividade não se resume apenas a televisão, o mesmo padrão pode ser observado em diferentes veículos e peças publicitárias em plataformas e veículos digitais ou analógicos.
Representatividade e diversidade na mídia
A falta de representatividade na mídia vem sendo amplamente divulgada e com ela amplia-se também o debate sobre o racismo no país. Ao compreender que as lentes são meras ferramentas tecnológicas e que a escolha de quem ocupa o lugar de protagonista é uma escolha determinada pelos detentores dos meios de comunicação, coletivos e movimentos sociais buscam, desde a década de 1980, construir estratégias para uma comunicação popular contra a hegemonia, estando em disputa pela narrativa de comunidades periféricas e faveladas.
A falta de diversidade nas referências televisivas e acadêmicas promove o que a jovem comunicadora Nathália da Matta chama de epistemicídio: “A gente vive uma necropolítica e nessa política de morte se escolhe quem deve morrer e quem deve sobreviver” (sic). Temos que ter estratégias para tentar driblar essa política de morte. A primeira coisa é reconhecer que essa política existe. A quantidade de jovens negros que morrem todos os dias no Rio de janeiro é assustadora. Como as famílias pretas vivem seus lutos? Isso não é debatido com a devida atenção, é muito pouco abordado pela mídia. As mães negras que vivem essa situação constantemente são silenciadas pela grande mídia.
A disputa de narrativas se fortalece na medida em que as políticas afirmativas evocam um sentimento de pertencimento. Pela primeira vez a população negra foi incluída dentro de uma política de agenda positiva de valorização e reconhecimento. No Censo realizado no ano 2000, 53,7% da população brasileira se declarava branca; em 2010 houve uma inversão nas proporções e 50,07% da população se declarou negra. Não por acaso essa foi a década de implementação das políticas de cotas nas universidades públicas. Se por um lado as ações afirmativas ainda estão em disputas por diferentes segmentos da sociedade e por sua vez não são capazes de garantir a integridade física e mental da população negra, por outro, reverberam as vozes de combate às desigualdades, sobretudo no que se refere ao combate ao racismo.
Racismo na mídia
O racismo define-se enquanto um sistema estrutural, que diante de inúmeros vetores sociais, como as relações pessoais, políticas públicas, jurídicas e institucionais, por exemplo, se apresenta de forma imperativa e afirmando, historicamente, a inferiorização da raça negra. A população negra carrega fortes e seculares resquícios de incontáveis explorações e demais violações de direitos aos quais os antepassados da maioria populacional do Brasil sofreram. Não foi possível sair ileso diante de cruéis processos de desumanização desses corpos, lidos na história como incivilizados, desobedientes e selvagens.
Para Silvio de Almeida (2019), podemos dividir o entendimento sobre o racismo a partir de três concepções: A primeira é a concepção liberal, chamada pelo autor de individualista, com foco no indivíduo e seu comportamento, nesta concepção o autor alerta: “O problema de tratar o racismo como um problema moral, psicológico ou jurídico simplesmente, é que o racismo aparece como se fosse um problema meramente individual.” diz o autor; a segunda é o racismo institucional onde o racismo é fruto do mau funcionamento das instituições e neste sentido, as políticas de acesso garantiriam seu fim; a terceira concepção é o racismo estrutural que destaca de forma profunda a forma como nossa sociedade se constituiu ao longo da nossa história:
“Ou seja, o racismo não é o mau funcionamento, não é um problema comportamental, o racismo é a normalidade, é o normal. A sociedade é racista porque em uma sociedade com a nossa história, que se sustenta em torno da desigualdade, o racismo funciona tanto como uma ideologia quanto como uma prática de naturalização da desigualdade. E é sobre elas que temos de agir.”[3]
Silvio de Almeida, 2019, pg 19.
Quem tem direito a proteção e ao isolamento social?
O vírus que chegou ao Brasil no primeiro semestre de 2020 demonstrou mais uma vez essa desigualdade apontada por Almeida, pois o mundo foi desestabilizado com a incidência de um vírus altamente violento e que desenvolve uma doença com fortes problemas respiratórios, a Covid-19. A velocidade como ocorreram as manifestações da doença convocou a OMS (Organização Mundial de Saúde) a reconhecer o contexto atual como pandemia, impondo o isolamento social como estratégia de prevenção e controle epidemiológico. No entanto, quem tem direito a proteção e ao isolamento social? A partir da urgência de pensar a prevenção à saúde de forma territorial com estratégias de comunicação, surge a rede de “Jovens de Niterói e São Gonçalo” mobilizados pela OSC BemTV educação e Comunicação e pela Frente PapaGoiaba de Promoção dos Direitos da Juventude Negra, composta por 34 organizações sociais e coletivos de ambas cidades.
A rede de “Jovens de Niterói e São Gonçalo”
A rede reúne 500 jovens de periferias, que recebem formação em comunicação, conteúdos sobre saúde, prevenção e Garantia de Direitos, partilhando em suas redes de transmissão e totalizando 128 mil moradores de favelas e comunidades da região, diretamente conectados entre si. Contrariando as estatísticas, esse jovens mantiveram-se vivos e se apropriaram das ferramentas mais simples de comunicação popular para se protegerem do vírus, da desigualdade social e da falta de acesso à informação e serviços públicos básicos, como auxílio emergencial e assistência médica.
Keiton Sérgio, técnico de informática e membro dos “Jovens comunicadores” e do movimento “Libertários”, o mesmo faz uma análise sobre a diferença entre viver e sobreviver. Para ele a juventude negra é determinada a partir de uma condição de constante luta pela sobrevivência, pois para se manter vivo o jovem precisa recorrer às suas manifestações culturais e artísticas, construindo algo próprio e se apropriar de ferramentas de comunicação, onde foi fundamental para ampliar sua rede de proteção: “… a gente tem que se aquilombar por medo de sair da comunidade, aqui dentro o samba, a igreja, o terreiro… são ambientes mais seguros e isso se dá pelo medo de ir pra fora e não se sentir pertencente, por não nos vemos representados. Nossa roupa, nossa fala, nossos gestos são julgados e não são aceitos pela sociedade. Estar vivendo nesse medo pode gerar ódio da parte de alguns, pois a gente vive em uma guerra civil não declarada e de um lado o oprimido tentar se integrar ao sistema e ao mesmo tempo garantir seu universo de segurança”.
Com o advento da comunicação digital a disputa de narrativas não está mais concentrada nos grandes veículos de comunicação, é preciso reinventar as estratégias dessa construção de sentido a partir da potência do território, respeitando sua subjetividade e as suas prioridades. É preciso que o mundo saiba que a periferia tem sua própria história e que cada vez mais está buscando estratégias de re-existir, sobretudo os movimentos sociais protagonizados pela juventude, alvo latente das ações letais do Estado. Sobre os movimentos sociais, a autora Nilma Lino nos ajuda a refletir que os mesmos são importantes educadores sociais.
“O movimento é educador porque gera conhecimento novo, que não só alimenta as lutas e constitui novos atores políticos, como contribui para que a sociedade em geral se dote de outros conhecimentos que a enriqueçam no seu conjunto” (Nilma Lino Gomes, 2017, p. 10), completando ao falar sobre as potencialidades dessas articulações: “Os movimentos sociais são produtores e articuladores dos saberes construídos pelos grupos não hegemônicos e contra-hegemônicos da nossa sociedade. Atuam como pedagogos nas relações políticas e sociais.” (2017, p. 16).
A juventude grita por vida e oxigênio para mover as nossas existências a partir de uma leitura social sobre os seus corpos e as suas imagens de forma positiva, afetuosa e sob uma ótica que os veja num lugar de possibilidades e permanência.
Referências:
[1] Visitado em 07/09/2020 as 16:30 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-02/uso-de-celular-e-acesso-internet-sao-tendencias-crescentes-no-brasil;
[2] Visitado em 07/09/2020 as 16:00 https://www.almapreta.com/editorias/realidade/pesquisa-mostra-aumento-da-presenca-de-negros-em-comerciais-de-tv;
GOMES, NILMA LINO. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017;
[3] NONAKA, A.; SANTOS, E.; ZUFFO, L.; CRUZ, R. Entrevista com Silvio de Almeida. Humanidades em diálogo, v. 9, n. 1, p. 19-37, 1 fev. 2019. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-7547.hd.2019.154260;
(*) Daniela Araujo é jornalista, coordenadora da OSC BemTV Educação e Comunicação e documentarista.
Tainara Cardoso é Psicológa e Mestranda em Subjetividade, Política e Exclusão Social pela Universidade Federal Fluminense.
(**) Foto de capa Claudio Barria sobre ensaio campanha #QualPerfil – Kangen.cc