A primeira mulher transexual a conquistar uma cadeira no Congresso Nacional analisa sua trajetória e a integração da pluralidade da sociedade no cenário político brasileiro. Com cerca de 256 mil votos para o Congresso, Erika Hilton também foi a primeira vereadora trans eleita na capital paulista. Apesar da inclusão ainda ser relativamente lenta, a deputada pontuou que o início desse processo é fundamental para uma evolução gradual.
“Precisamos tirar o olhar segmentário de cima dos corpos das comunidades negras, LGBTQIAP+, e mostrarmos por “A + B” que nós temos capacidade de discutir os mais diversos temas”
Da prostituição ao Congresso
Como 90% das mulheres transexuais brasileiras, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Erika teve a prostituição como forma de sobrevivência após ter sido expulsa de casa aos 15 anos.
“Minha mãe foi manipulada pelo fanatismo religioso, viveu uma lavagem cerebral. Ainda assim, ela nunca me boicotou. O discurso fundamentalista fantasiado de cristão adentrou minha casa, e eu fui expulsa”,
De família evangélica, precisou frequentar a igreja na tentativa de “ser curada”. Como não há cura para o que não é doença, Erika continuou sendo a mulher que sempre sentiu ser, e foi abandonada para viver nas esquinas.
“Vivi a prostituição compulsória, o que é comum a mulheres trans num país violento e transfóbico como o Brasil”.
A prática da transfobia – a violência e a subjugação às quais os corpos transexuais são submetidos -, foi rapidamente compreendida por Erika na desumanização das ruas, quando sentiu essa realidade social na própria pele.
Porém, com o tempo a mãe de Erika percebeu que não havia nada de errado com a filha e começou a procurá-la. Erika Hilton voltou para casa e, aos 21 anos, a jovem paulistana recebeu todo apoio da mãe para voltar a estudar. Pode concluir o ensino médio pelo EJA (Educação de Jovens e Adultos), fez a prova do Enem e começou a cursar pedagogia na Universidade Federal de São Carlos, no interior do estado.
Nesse momento, após a vivência dolorosa nas ruas, teve o primeiro contato com os movimentos estudantis, que resultaram em sua politização e na vontade de transformar a dor em luta. Na época, Erika fundou um cursinho pré-vestibular para mulheres trans e travestis.
“Entendi muito rápido que aquilo não era natural. Que era um projeto de desumanização, de empobrecimento e vulnerabilização dos nossos corpos. Era doloroso demais estar na rua, jovem, sozinha, e tendo que lidar com todos os dilemas que a noite impunha ao meu corpo. Normalizava a violência porque achava que era a única saída.”
Importância da representatividade na política
A primeira ação expressiva de Erika Hilton foi a luta para que uma empresa de ônibus imprimisse seu nome social na passagem em 2015. Ela protagonizou uma grande mobilização online pelo direito de pessoas trans terem seu nome social impresso nas passagens de ônibus. “Conheci a militância e passei a fazer parte dela. Eu queria transformar a fome, o abandono, o desespero e a ausência de oportunidades a pessoas transexuais em algum propósito”.
A repercussão foi tanta nas redes sociais que ela conseguiu o que, tempo depois, se tornou direito. Com a repercussão da militância, foi convidada pelo PSOL para, em 2016, se candidatar a vereadora em Itu, no interior de São Paulo.
“Nós estarmos na política significa transformação, esperança, um contragolpe, um contra-ataque, uma reparação histórica. Então, eu acho que é essa a importância que está representada quando vozes como a minha chegam nesses lugares que até antes eram inimagináveis”.
Apesar de não ter sido eleita, ela liderou uma candidatura coletiva para a Assembleia Legislativa de São Paulo em 2018. A Bancada Ativista conseguiu quase 150 mil votos e garantiu uma vaga na Alesp, com nove nomes no grupo. Ela teve tanta relevância que, dois anos depois, foi a vereadora mais votada da capital paulista e presidenta duas vezes da Comissão de Direitos Humanos de São Paulo.
Gente é pra brilhar!
Com o lema “Travesti preta, deputada eleita”, Erika Hilton conquistou uma cadeira no Congresso Nacional em uma vitória histórica em meio ao retrocesso político vivido nos últimos anos. Ainda assim, acredita que ter sido eleita pode significar um sopro de esperança para que “ideias progressistas não se percam em meio ao conservadorismo”. “O cenário é duro, e diante do retrocesso, da catástrofe política que estamos vivendo, existem grupos se firmando”, diz.
“Eu saí das ruas, da prostituição, e cheguei ao Congresso. Não fui a única a passar por tudo isso. Estava longe de ser. Precisava lutar por políticas que nos acolhessem”.
Com mais de 530 mil seguidores nas redes sociais, Erika Hilton se propõe a defender pautas para além das questões que envolvam a comunidade LGBTQIAPN+. Durante seu mandato, já apresentou ações para combate à fome, melhora na saúde pública, economia e de contenção das mudanças climáticas. Em sua fala, a deputada destaca que o preconceito, a discriminação e o ódio, muitas das vezes enquadram a comunidade em um lugar unilateral.
“Parece que nós não chegamos aqui por mérito das nossas lutas e capacidade política de elaboração. Parece que alcançamos esse lugar por uma agenda única e que é só sobre isso que sabemos falar, e só sobre esse espaço que nós teremos o direito de ocupar. Isso é cruel, não tem a ver com a nossa capacidade e isso nos limita a um lugar que é típico do preconceito”, enfatizou a deputada.
A agora deputada federal foi eleita uma das “100 mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo em 2022” pela BBC, foi destaque do “Next Generation Leaders”, da Revista Time, e foi reconhecida pela ONU como uma das pessoas negras mais influentes do planeta.
“Trabalho no resgate da democracia. Acho que minha eleição é um grito de que a gente precisa avançar, caminhar e garantir a representatividade”.
Edição de Simone Machado, mestre em Teoria da Literatura e literatura comparada (UERJ) e parte da equipe editora da Revista Pluriverso.
(*) Esta matéria foi produzida com base em entrevistas concedidas pela Erika aos portais iBahia e Terra NÓS.