Eu/Eles, a cidade
Nasci na Gamboa… do ladinho da Pedra do Sal… mas nunca tinha relacionado minha história com a história desse pedacinho do Rio de Janeiro. “Nasci lá por acaso” é o que digo para defender meu coração Papa Goiaba1. Foi num rolê com mais de trinta comunicadores populares, como eu, promovido pelo Núcleo Piratininga de Comunicação que me fez viajar no tempo a partir desse espaço da cidade.
Foi a comunicação popular como forma de luta que possibilitou reflexões que só poderiam surgir em um espaço coletivo de evocação da memória. Nada como andar em bando pra gente se sentir parte. Nada como voltar ao lugar do nascimento, se deparar com a morte para renascer e parir novas lutas velhas.
Imagens em disputa
Ser carioca é chegar da janela, qualquer janela, e procurar o Cristo, enfatizava a propaganda de um shopping da zona sul carioca dos anos 2000. Uma excelente estratégia de marketing para quem considera a zona sul da cidade a própria cidade, ignorando as favelas e demais municípios da região metropolitana considerados cidade-dormitório. Sim, dormitório, pois neles vivem ou apenas dormem os milhares de trabalhadores que limpam, servem, vendem e atendem toda sorte de turistas e os mitológicos “cariocas da gema”, como se denominam os nascidos na cidade quando filhos de pais nascidos nela.
Pertencer a esta terra, portanto, é mais do que a possibilidade de uma vista tida como privilegiada, é poder circular por ela e voltar vivo, é não ser “confundido” pela polícia por ser jovem e negro, é perceber a memória por trás das camadas de tintas, de terra e de cimento.
A memória fora do museu, talhada
Saindo do Museu de Arte do Rio (MAR) situado ao lado do Museu do Amanhã e do trecho da zona portuária que tomou um banho de loja, quem sabe de uma loja do mesmo shopping da zona sul da propaganda, uma curta caminhada revela a Pedra do Sal, literalmente talhada à mão por escravizados negros. Memória esculpida a sangue, que teima em não ser apagada.
A escadaria dá acesso ao Morro da Conceição marco da inicial da fundação da cidade, um lugar de moradia daqueles que resistem à especulação imobiliária que o capital impõe ao redor, escondendo com seus arranha céus espelhados a história que se deseja apagar com estratégias de folclorização e branqueamento. Há que ter energia para subir, força para encarar a escadaria e toda a história de luta de cada degrau e construção histórica que ainda resiste.
…apagada
Do alto do morro vemos os novos prédios cujos vidros não refletem a história. No outro lado, a descida suave pelos Jardins Suspensos do Valongo nos lembra que o prefeito Pereira Passos deixou ali sua marca de apagamento. Conter encostas, abrir avenidas ou construir parques olímpicos seguem sendo argumentos vendidos e comprados pelos donos do capital para seguirem o processo de gentrificação que continua expulsando a classe trabalhadora para longe das áreas valorizadas da cidade.
…teimosa
A casa da Tia Ciata permanece em pé, mais uma vez a teimosia de resistir ao apagamento das memórias fundadoras desta terra. Mais alguns passos e lá está o Cais do Valongo, lugar da chegada dos escravizados construído para tirar das vistas da sociedade imperial local a dureza de olhar tantos corpos sendo despejados que antes chegavam no porto que hoje conhecemos como praça XV.
Se os vivos já eram difíceis de tragar, os mortos traziam consigo o cheiro da vergonha cristã, desovar em vala rasa a carga perdida e nomear como cemitério dos pretos novos é a permissão para escrever uma história de heróis genocidas os verdadeiros capatazes do império, cúmplices de uma sociedade escravista e desumana.
A memória teima em não ser apagada por completo, o trabalhador que construiu a cidade teima em ocupá-la desde o tempo da escravização oficial até os dias de hoje. Se a cada projeto urbanístico nossos vales longos são soterrados seguimos talhando pedras.
Memória talhada, comunicação patuá
Talhamos pedras mantendo vivas as memórias de lutas e resistência do povo negro, talhamos ao buscarmos vestígios dos povos originários, os primeiros a serem dizimados pelos invasores e talhamos quando, através da comunicação popular, negamos a narrativa única dos grandes meios de comunicações e dos historiadores eurocentrados que teimam em criminalizar nossos encantos e mandigas…
Mal sabem eles que somos forjados na cultura das frestas e onde houver uma, entraremos com nossa ginga para disputar cada narrativa e cada espaço desta cidade cheia de histórias, dessa cidade complexa e impossível que segue sendo mesmo a contrapelo das forças dominantes.
1Papa Goiaba é uma forma pejorativa, criada provavelmente por cariocas, para designar os nascidos no leste fluminense, do outro lado da ponte ou simplesmente em Niterói no Rio de Janeiro.
Daniela Araujo @daniaraujo é comunicadora popular, documentarista, formada em jornalismo e doutoranda na ECO/UFRJ, cria da OSC BemTV Educação e Comunicação, onde foi coordenadora. Atualmente está sub-secretária de culturas na SeCult/Niterói.