“As ruas são nossos pincéis e as paletas nossas praças. Para a rua, tambores e poetas”. As paisagens nos rodeiam e passam a compor signos que ajudam a materializar a subjetividade dos sujeitos. Todo centro urbano cria e modifica suas personas, a partir das exigências que as cidades podem fazer e a partir daquilo que as cidades oferecem. A transformação do espaço urbano está intimamente ligada à transformação dos sujeitos. Niterói não é mais a mesma de quando os bondes transportavam as pessoas entre os bairros.
Neste texto, a pretensão é propor uma discussão a respeito de como as cidades e suas particularidades são capazes de impor hábitos aos sujeitos, conduzi-los ou condicioná-los a participar emotivamente de narrativas, de gêneros diversos, como personagens centrais. Para isto, aqui traremos sujeitos literários e musicais: da literatura de Dostoievski e da canção popular brasileira, Itamar Assumpção. Em ambos, encontraremos leituras a respeito de suas cidades que permitem enxergar como tais centros urbanos são decisivos na hora de “formatar” as características dos sujeitos em consonâncias com as cidades.
Sabemos que o fazer artístico se apropria do que são, essencialmente, as vicissitudes dos homens. Se, em uma perspectiva sociológica, podemos apontar a construção dos homens como uma construção a partir das realidades que o rodeiam, podemos afirmar a cidade, as cidades, como espaços construtores de significados. Significados esses que potencializam sujeitos a tomarem suas ações, enquanto o próprio cenário se torna parte construtora das ações, intervindo e interagindo, modificando e acrescendo, sejam sensações ou fatos.
A arte, a literatura, a canção, potencializam que determinados desencontros dos sujeitos sejam tratados por vias não convencionais, de forma que cada texto seja capaz de representar um universo subjetivo de potências em construção. Mais um tortuoso caminho de levantamento de hipóteses de voo a partir do que apenas as leituras podem sugerir.
Alguma teoria
Para compactuar com esta leitura sobre a personificação das cidades nos textos escolhidos, partiremos da concepção teórica de Vladimir Toporov (2003). Ela trava diálogo sobre a construção de um texto da cidade, elemento semiótico de fundamental importância para ancorar e sugerir caminhos para esta leitura.
A cidade criada unicamente por desejo de um homem carrega desde sua fundação estigmas e sensações que conduzem o imaginário popular e apontam para o lugar de surgimento do ideal fabular, místico, em torno da cidade. A partir do artigo “Petersburgo: personagem atuante em Crime e Castigo”, de Edélcio Américo, extraímos as citações a seguir, que ambientam a ideia que discutiremos ao longo desse texto.
O mal estava na violação das leis da natureza, do bom senso, da vida humana, dessa forma o “mau” começo perpassa toda a história de Petersburgo, do início ao fim. Esse “mau” começo, sem dúvida, explica em muito o tema infernal de São Petersburgo
Toporov, 2003, p. 47
Uma cidade que surge da violação do estado natural das necessidades humanas, apenas por intenções vaidosas de um governante, é lida como um signo negativo, de mau presságio, misto de consciência ética e moralidade. Assim, engendrando nos sujeitos a perspectiva de cidade perversa, sombria, em que nem o clima é cuidadoso com os filhos. A perversão do processo natural de criação e manutenção da vida -que é propriamente a vida de uma cidade -é rompida pela intervenção de um homem, como se a dinâmica vida e morte fosse atravessada por um sinal sombrio. É como se a cidade pudesse aglutinar em si harmonia e desvirtude, o centro de todo mal, de toda angústia e sofrimento, às vezes permeada por alguma luz. Prossegue Toporov:
A nenhuma cidade russa foram dirigidas tantas maldições, injúrias, desmascaramentos, insultos, recriminações, ofensas, lamentos, choros, desencantamentos, quanto a Petersburgo; o texto de São Petersburgo é excepcionalmente rico de representantes desse tratamento “negativo” para com a cidade, o que de maneira alguma exclui (e frequentemente supõe) fidelidade e amor
Toporov, 2003, p.11
Cidades surgem a partir das necessidades dos homens: se precisam sobreviver, se precisam comunicar, se precisam de referencial econômico. Quando a necessidade é igualar-se a outra dinâmica de poder e cultura-caso este de Petersburgo, talvez do Rio de Janeiro durante a adaptação da Corte Portuguesa -a banalização da representação da cidade é mais facilmente compreendida. A correspondência entre espaço e sujeitos não se dá mediante imposição, são sinais subjetivos que se constroem com o tempo.
Se pensamos em um paralelo com Brasília, a cidade planejada dos trópicos, o ideal que a circunda, desde a fundação, difere um pouco, mas chega à fins semelhantes. Os 50 anos em 5, a ideia de progresso e modernização no centro geográfico de um país de grandes proporções acabou transformando-se em signo de leitura de maledicências políticas. É como se hoje a cidade se resumisse ao Edifício do Congresso Nacional do Brasil.
Estas digressões nos permitem apontar para um caminho: as personas literárias correspondem aos ideais do imaginário coletivo. Em Dostoievski podemos observar como os personagens são atribulados pela dinâmica sufocante da cidade. Como interagem com os cenários que a cidade proporciona e como a cidade é elemento primordial para cada ação sucedida. Dessa forma, permitindo ler que, fosse outra a cidade, outra seria a história. A duplicidade de figurações de São Petersburgo é notada: nebulosa e transparente, a ideia que se cria, em literatura, é de uma imprecisão, confusão sublime, para evocar em quem encontra essa cidade a mesma sensação dúbia evocada pela narrativa.
Parte I: Dostoievski e a cidade
As histórias dos lugares acompanham os desejos dos homens. São Petersburgo foi fundada em 1703, a partir dos ensejos de Pedro, o Grande, de criar na Rússia uma capital de tons europeus, deslocando a feminina Moscou à outra dinâmica de poder e relações. Esta cidade, ora fabril, ora campo, do funcionalismo público, foi pintada e descrita por muitos “filhos”, de maneiras variadas. Por ser nosso recorte a obra de Dostoievski, em especial uma passagem de Crime e Castigo. Trataremos aqui da São Petersburgo abafadiça, sombria, de ares nebulosos -ainda assim também comentada por seus aspectos de beleza -mas com uma sensação dominante desufocamento, de tragicidade.
Postado, ele fitou demorada e fixamente ao longe; esse lugar lhe era especialmente conhecido. Quando frequentava a universidade, costumava parar -(…) e talvez o tivesse feito umas cem vezes -, precisamente nesse lugar, e ficar perscrutando o panorama realmente magnífico e sempre chegando quase a surpreender-se com uma impressão vaga e sem solução. Um frio inexplicável sempre lhe vinha desse panorama magnífico; para ele esse quadro esplêndido era pleno de um espírito mudo e surdo… Sempre se admirava de sua impressão soturna e enigmática, e deixava para decifrá-la no futuro por não confiar em si mesmo.
Dostoievski, 2001, p.134
A dualidade da cidade esbarra na dualidade do personagem e das condições em que as personas da obra se inserem. A pobreza e a miséria são apresentadas como dado, as questões sociais são demarcadas para que a concretude espacial não deixe de ser notada, embora haja luxo e imponência na capital. A atmosfera da cidade empurra o personagem para a mais profunda das inquietações, jogando-o à loucura, advinda da indistinção entre a profundidade de seus atos e a realidade.
Dostoievski apresenta uma Petersburgo marcada pela diferença e pela dúvida, pelo que há entre belo e cruel. A cidade é dúbia, logo o texto da cidade também o é. Sendo ambos assim, as personagens absorvem os ares da cidade e o incorpora à própria ação da vida, lidando com o fenômeno que é a cidade como se lida propriamente com as transformações pessoais
Canção e Cidade
Em 1993, Itamar Assumpção, expoente da Vanguarda Paulista, lança os álbuns “Bicho de Sete Cabeças”, volumes 1 e 2. Itamar, em sua obra musical, prezou por um profundo diálogo com a produção poética brasileira do período. Seu contato com a literatura é de íntima exposição ao objeto poético. Experimentou junto à cidade de São Paulo sensações talvez não tão mórbidas quanto às de Raskólnikov, mas pode tratar, em canção, das sensações de um sujeito marginalizado. Além de condicionado por raça e classe, sufocado por lugares de poder que se sobrepuseram à sua arte.
Em Itamar podemos ler os “textos da cidade” sob uma perspectiva abrasileirada, entendendo a cidade de São Paulo como sujeito ativo na construção do artista e da obra construída, personagem -ora grata, ora cruel -que acompanha o narrador posto em ênfase em cada canção. Aqui leremos “Venha até São Paulo”, canção que trata da cidade e suas constâncias, talvez petrificadas, talvez experientes. Porém, não conformadas, que permitem uma discussão sobre lugares que se ocupam socialmente.
Venha nesse embalo, concrete, fax, telex, Igreja, Praça da Sé, faça logo sua prece. Quem vem pra São Paulo, meu bem, jamais se esquece. Não tem intervalo, tudo depressa acontece
Assunção, 1993.
O que há de fruição a se aproveitar dessa cidade é o que de mecânico ela oferece: o cinza dos serviços automatizados, da tecnologia que então se dava. “Concrete, fax, telex” são signos que podemos interpretar como elementos que seguem um rumo da modernidade. Elementos que aprisionam na mais dura forma de servidão, criando um ideal de cidade que se atualiza e que se mantém dependente de vínculos sufocantes. E prossegue a letra: os espaços são marcados de maneira definitiva, e suas especificidades traçadas. Aqui, a cidade ganha ares religiosos. São Paulo surge de uma missão jesuítica, que apostava na “civilização” dos nativos por intermédio da religião, signo de não pode ser deixar de ser apontado, por manifestar uma espécie de ethos da cidade que se perpetua em seus eixos físicos.
E marca dizer que, em São Paulo, “não tem intervalo, tudo depressa acontece”. A cidade que não dorme, a cidade de dinâmicas de trabalho intensas. Desde seus ciclos econômicos fincados, como com o café, atravessa, perdura na ideia que vende de si de uma cidade que não para, em que tudo funciona a qualquer momento. São Paulo, a cidade de funcionalismos intermitentes, injetando em seus filhos a premissa da continuidade, da perpetuação do ideal ultra econômico. Não só, também da manutenção das dinâmicas de trabalho insalubres, sufocantes, renegando a estes cidadãos o lugar maquinal na sociedade.
É a cidade quem conduz as reflexões do narrador sobre a condição dos sujeitos dentro do espaço. A partir do que é São Paulo é que se diz o que são as pessoas. É nesta cidade que as pessoas são levadas ao limite: “Venha até São Paulo viver à beira do estresse/ Fuligem, catarro, assaltos no dia dez”. A completa desfaçatez do cotidiano se choca com o que há de inesperado. O que pode ser pesaroso ou nada sadio se choca com o que há de banalização ou com o que há de necessário em naturalizar algumas espécies de aborrecimentos cotidianos.
A poluição dos espaços está diretamente relacionada à poluição dos sujeitos. Uma relação composta da mistura entre o que há de amoroso e amargo entre sujeito e espaço. E desde o primeiro imperativo, a dinâmica da canção convida e afasta: “Venha até São Paulo/ São Paulo tem Socorro, tem Liberdade e tem Bom Retiro/ Tem Saúde, tem Luz sem ter claridade”. Ao tomar nomes das cidades e transformá-los em substantivos comuns, a jogo de dualidade se manifesta. Os nomes são a primeira caracterização dos espaços, mas aqui são também os mais comuns dos adjetivos: “socorro”, “liberdade”, “saúde”, “luz”.
Não há romantização dos espaços comuns, como talvez encontrada na “São Paulo, comoção de minha vida”, de Mário de Andrade. A cidade exige que o poeta e musicista se apresente como aquele que consegue acompanhar as dinâmicas de transformação de sua cidade e ainda ser parte de um todo que a cidade compreende.
Conclusão
Itamar nos convida a conhecer a cidade de São Paulo, de maneira irônica, participativa. Dessa forma, invoca que quem o escute participe de um outro ato de fundação dessa cidade, sempre nova para quem nunca a viu, a mesma para quem a conhece, mas criando potência para que esses papéis possam se fundir. Com Dostoievski, a sequência de leitura nos permite desbravar uma São Petersburgo que por vezes amedronta, mas também é atraente, também permite encantamento, por aquilo que só cada cidade pode oferecer. As cidades, em ambas as obras, cumprem papel determinante no entendimento da atuação dos demais personagens, das demais vozes que surgem da narração.
Acompanhamos, na angústia do personagem, a angústia que sobrepuja a cidade, que sobrepuja sujeitos, embora os que aqui surjam não compartilhem dos mesmos anseios. Porém, sejam atravessados completamente pela dinâmica das cidades que contam e cantam.
Como afirmamos no começo, a arte é ferramenta que possibilita não apenas uma tradução das sensações dos homens, mas uma representação intensa das condições humanas. Cheia de dúvidas, loucuras, inseguranças, temores até a plena identificação dos homens com os espaços que ocupam. Entender os espaços que ocupamos nos permite conciliar e desafiar as instâncias mais fincadas das resoluções ditadas como naturais, ou conquistadas. Se há literatura, que ela possa questionar.
Veronica Silva é mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira na Universidade Federal Fluminense – UFF. Pesquisa Canção Popular Brasileira.
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