Por Felipe Rodrigues Siston e Luísa Marques Dias
A experiência do conhecimento compartilha, possivelmente, da radicalidade autobiográfica. Como cada pessoa, é uma mobilização única de saber, que também cria, inaugura, cuida e não só descobre. O ato de conhecer traz junto a necessidade de apresentações na primeira pessoa, plural ou singular, como modo de contribuição que traz colado a si não um sistema de pensamento, mas percurso de ocupação vivido, neste nosso caso, coletivamente. O “nós” remete ao coletivo da Biblioteca Engenho do Mato, a BEM, e aos autores aqui, participantes dela, trazendo inquietações da Geografia e da Comunicação, áreas do conhecimento que nos envolvem profissionalmente. A experiência de desenhar o modelo próprio de comunicação da BEM provoca reflexões, traduzidas aqui em quase conceitos, noções, na verdade, teorias ensaiadas em praça pública abertamente.
O percurso de nossa caminhada revela menos descobertas e mais as potências de criação junto ao espaço urbano reterritorializado e dos movimentos sociais engajados por essa causa. É de um lugar, Engenho do Mato, bairro em Niterói, que compartilhamos experimentos reflexivos e práticos de criação de saber no campo da comunicação como territorialização, ganho ou retomada de territórios absolutos e relacionais¹. Destacamos nossa centralidade em comunicar a territorialidade através das fronteiras, que posiciona um debate sobre “poder”.
Neste sentido, os processos que foram deflagrados no Engenho do Mato pela ressignificação da BEM que envolveram a reterritorialização se assemelham à dimensão cultural, pois entendemos que este processo parte dos sujeitos corporificados, quando a comunidade avança para a retomada daquele espaço pela ação direta. Um novo significado para o lugar foi estabelecido, com novos usos e novas atividades, por meio da apropriação simbólica. Seria então, a ressignificação de um novo território a partir de novos conjuntos de relações.
Quem somos na organicidade de nossas interações, e qual rede criamos e nos engajamos no sentido de territorialização, articulados ao meio, para promover não só pesquisa mas também ação, mudança social e cultural? É um trabalho investigativo em andamento a respeito das possibilidades que, o processo de ocupação de uma biblioteca por meio de ação social e da formação de redes de relações identitárias, têm caráter transformador na comunidade.
De qual lugar se fala
Começamos pelo espaço de onde se fala. Tem início com os espontâneos mutirões pela ocupação do espaço que se tornaria a BEM. Consequência imediata do movimento Hip-Hop, da Roda Cultural do Engenho do Mato, a BEM era uma fronteira a ser vencida. Ao trocar livros em formato de “Biblioteca Móvel” durante as chamadas “Batalhas de Conhecimento” (competições de ritmo e poesia de fala improvisada com base em temas sugeridos pelo público) na praça central do bairro, o grupo se via sem espaço físico para guardar as doações de livros, e assim volta o olhar de transformação sobre a geografia local. É a necessidade do espaço que gera o gatilho para protestar o abandono do prédio público vizinho, “centelha de indignação” (CASTELLS apud ELLWANGER, 2018, p.85). Em frente à praça do bairro existia uma biblioteca desativada há 10 anos. O espaço, que na projeção arquitetônica educacional de Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro para os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), também conhecidos por “Brizolões”, apelido em função do projeto político do então governador que popularizou no Estado do Rio de Janeiro tais estruturas educacionais, deveria servir como edifício de recepção e passagem dos alunos que entravam para as salas de aula. Engenhosidade de visibilidade e estímulo à leitura, estrategicamente posicionados na periferia para servir de acolhida e iniciação.
Para o grupo da Roda Cultural era incoerente existir um projeto de distribuição gratuita de livros na praça e em frente ao prédio abandonado, uma história, um projeto de futuro, uma biblioteca negligenciada pelo poder público. Nesse sentido, ocupar o prédio público por meio de ação direta foi o recurso usado no momento que desencadeou uma série de mutirões contra o abandono institucional do prédio da antiga biblioteca escolar da rede pública estadual. 2013 foi ano da reterritorialização no bairro Engenho do Mato, mais precisamente no CIEP-448 Ruy Frazão Soares, após uma década de abandono.
Jovens do grupo fundador de mobilização pela ocupação da biblioteca em atividade de campanha no prédio abandonado, em junho de 2013. Fonte: Acervo da Autogestão da Biblioteca Engenho do Mato. A isso chamamos de mobilização pela reterritorialização.
Cenário relativo à ocupação
Salão principal da biblioteca antes da ocupação cultural e os mutirões de reforma/ Atividade gratuita de dança de rua depois dos mutirões. Fonte: Acervo BEM
O propósito deste ensaio é lançar bases reflexivas, para pensar em rede, com a comunidade de leitores, afinal, somos uma biblioteca e, no feminino da sigla, BEM, um bem comunitário, geograficamente posicionada entre a praça e a escola pública. Espécie de porta de entrada, que organiza a relação da vizinhança ou de quem se aproxima da escola, com a educação das gerações de juventude, especialmente a negra periférica, com a cidadania do amanhã e tudo mais que nos permitimos o poder de ser enquanto crescemos dentro das cidades. É principalmente uma ocupação de ideias e ideais a nossa manifestação cultural.
Figura 2 – O Processo: Antes e Depois
A reterritorialização da comunidade, por meio de uma ocupação de um espaço público abandonado, transformou e ressignificou o antigo local em um novo lugar de trocas de experiências e conhecimentos. Aproximou as pessoas pelo cuidado com a localidade, valorizando os sentimentos de afeto e pertencimento. Se identificando com o lugar em questão, gerador de “raízes”, onde o indivíduo pode se conectar com o ambiente ao seu redor, e compreender seu lugar no mundo, e na sociedade. (DIAS, 2018, p.47)
É possível pensar a partir de uma metáfora problema. A do território da cidade estar, tal como o mundo e o país, desde o ambiente micro local, a “escorrer pelos dedos, escapando às mãos” do espírito mobilizador da cultura, da ciência e da cidadania. A metáfora significa que o universo político-midiático das relações cotidianas da democracia, inclusive na dimensão de exercício individual da cidadania, do direito à cidade, vive rupturas (LEFEBVRE, 2001). E que se definem como crise específica: a deslegitimidade da democracia liberal, a multiplicação das estruturas e estratégias sensíveis para disseminação do medo, do ódio e outros estados emocionais. Sob atenção disputada, o indivíduo também é afetado nos modos de se relacionar com o espaço, construído por mensagens simples, principalmente imagens, cuja elaboração de pensamento é posterior à emissão e estão sujeitas a contínuo debate (CASTELLS, 2018, pp. 26-28) em redes sociais virtuais. Refletimos a partir das cidades e das interações desde o nível micro local, o bairro, a praça pública, o prédio abandonado recuperado em biblioteca comunitária, que funciona no contínuo ensaio da autogestão, isto é, por decisões que valorizam a autonomia dos coletivos, das rodas de conversa, na necessidade de criar saber e prática comunicacional.
Com a rotina da sobrevivência instaurada, da casa para o trabalho e do trabalho para a casa, no tempo datado pelo relógio, as peculiaridades da cidade passam despercebidas pela população, que se tornam sonâmbulos em relação aos fenômenos espaciais por onde transitam, em uma espécie de “miopia coletiva” (LACOSTE, 2010). Como não se dar conta do abandono? Como não se mobilizar contra a falta de investimento local, em educação, em uma sociedade capaz de ciência, conhecimento, troca cultural. Por dez anos, ao redor da BEM, a “miopia coletiva” de Lacoste explica como teoria uma realidade cujo território parece ter deixado de fazer sentido ou questão social. Não havia comunidade de autogestão, de cuidado e mobilização não apenas por um conjunto arquitetônico, mas uma história e um projeto, um futuro de valorização ainda que incerto, que demande trabalho, ou melhor, luta.
No sistema capitalista em que vivemos, a força de trabalho é negociada como mercadoria; tempo de trabalho, força de trabalho e intensidade de trabalho são transformadas em trabalho social alienado (HARVEY, 2016). O trabalho como luta por direito tem outra cultura:
A falta de investimentos sociais e a não implementação de políticas públicas conforme as necessidades sociais em áreas essenciais, como saúde, saneamento, educação, habitação e transportes públicos abrem possibilidades de novas frentes de luta, como aquelas pelo direito ao espaço geográfico ou à cidade (SANTOS, 2008, p. 59).
De acordo com Santos, a ausência de investimentos no bairro, cria possibilidades para essas novas frentes de luta, como a BEM, que promove nos arredores do bairro o acesso à cultura por meio de eventos, saraus poéticos, atividades corporais de luta e dança. Têm o intuito de promover melhorias através da cultura e gerar interesse pelos livros, além de se tornar um ambiente de estudos ou para o combate à desinformação. Participaram deste processo de ação direta, não só os moradores e estudantes, mas também simpatizantes do movimento empenhados em transformar o local para uso e benefício da comunidade, principalmente aqueles que acreditam na proliferação da cultura. Um movimento orgânico, que surgiu DA comunidade PARA a comunidade.
O funcionamento de uma biblioteca tradicional não era suficiente, a força do encontro para os mutirões espontâneos oferecia o que podia ao entorno, e esse poder comunitário e cultural vinha na forma de aulas de dança, capoeira, grafite e pintura, na criação de um afeto pelo espaço, a partir das experiências cotidianas (TUAN, 1983). Os mutirões têm cada vez mais se desenvolvido, com voluntários fixos e outros que vêm e vão, a fim de ajudar na organização, ou na falta dela, pois novas pessoas que trazem diferentes saberes, modos de pensar e construir, acreditando em um futuro que uma nova forma de educação é possível integrada ao direito à cidade.
O conjunto das iniciativas e das ações promovidas pelos voluntários da BEM, a partir da recuperação e produção de novos significados para o lugar, nos remete aos processos de apropriação socioespacial que constituem a vida. Conforme Raffestin (apud HAESBAERT, 2011, p.84), essa apropriação constrói para si espaços de vivência, se apropriam, produzem e dotam de significado. A isso a Geografia denomina de território e a produção de territorialidades. O lugar é, para Doreen Massey (2008), onde o fluxo de redes de encontros de trajetórias e de relações determinam especificidades e identidades, são heterogêneos e múltiplos, viabilizam um “sentido global de lugar”.
As ações cotidianas no espaço vivido e relações de vizinhança contribuem para garantir diversos projetos que promovem a identidade sociocultural no dia a dia. Envolvem o coletivo através do sentimento de pertencimento ao lugar, por meio de rede de relações sociais. Robert Sack (1983) escreve que a territorialidade seria uma estratégia para estabelecer um acesso diferencial às coisas e pessoas, portanto uma tentativa de influenciar, afetar ou controlar objetos, pessoas e relações. Ou seja, delimitando o controle sobre uma área geográfica específica. Nesse sentido, a territorialidade pode ser facilmente comunicada através de um símbolo, que nesse caso é a fronteira, declarando posse ou exclusão a partir de uma localidade no espaço.
Percebemos uma relação íntima entre o estabelecimento do território nas dinâmicas que envolvem a territorialidade humana e a comunicação por meio da fronteira. Exploramos essa relação na existência de um esforço em comunicar – por meio da expansão ou retração, ou movimentação de indivíduos corporificados que compõem a BEM – a dominação de um território que possui uma fronteira permeável a determinadas práticas, tipos de valores, e determinados tipos de sujeitos. Muitas das ações da biblioteca e de seus integrantes, acabam por cumprir o papel de comunicar uma característica do território.
Por conseguinte, as relações de poder se estabelecem na estrutura social, implicando em uma multiplicidade das formas de poder. Sabemos que onde há poder, há resistência, e nessa condição a BEM resiste desde sua ocupação em 2013 em suas ações e reações, culminando em uma complexidade das relações de poder. Sobre o debate das fronteiras, os autores Mezzadra e Nielson (2016) apontam que elas servem muito mais para regular do que excluir, destacando a sua permeabilidade. Analisam as fronteiras não só em suas dimensões espaciais, mas também temporais, destacando a existência dos conflitos, tensões e lutas que as envolvem (MEZZADRA; NIELSON, 2016). Haesbaert (2016) revela ao leitor um duplo sentido da fronteira, que pode ser considerada como um espaço de luta, do avanço e da inovação, e ao mesmo tempo da contenção, da retenção e do conflito.
Casos globais de fronteiras como espaços de luta foram observados ao longo de toda a segunda década do século XXI, iniciados nos chamados Occupy, a partir de Wall Street, protesto contra a desigualdade econômica em setembro de 2011 em Nova York, inspirado na Primavera Árabe, manifestações que começam no ano anterior em países de regimes autoritários. No Brasil, o Movimento Passe Livre (MPL) se destacou em 2013 pelas insurgências em Goiânia e Porto Alegre, onde Cardoso e Di Fátima (apud ELLWANGER, 2018, p. 81) acreditam terem se iniciado as Jornadas de Junho, movimento massivo e múltiplo de protestos em diversas cidades brasileiras. E em 2016, as ocupações escolares por secundaristas reivindicavam melhores condições de ensino e autonomia da aprendizagem.
Múltiplos autores apontam as similaridades dos protestos brasileiros com outras manifestações no mundo. Manuel Castells (2014), Henrique Soares Carneiro, Giovanni Alves, Vladimir Safatle e Tariq Ali (in ALI et al., 2012) relacionam diversas características comuns de movimentos ao redor do mundo facilmente identificáveis também nas Jornadas de Junho e nas ocupações que se seguiram no Rio de Janeiro. (…) Os movimentos são conectados em rede de múltiplas formas e têm sua existência contínua no espaço livre da internet. Mas eles se tornam movimentos ao ocupar o espaço urbano, pela perseverança das manifestações de rua ou ocupações de espaços. (ELLWANGER,2018, p. 83-84)
A BEM segue “perseverando” há oito anos na ocupação do território. Testemunha quase inteiramente a década global de eclosão dos movimentos de ocupação. E tem o potencial para ampliar a estruturação de sua rede de mudança social. Reproduzir a “fagulha” de indignação contra o espaço desocupado por um Estado que autoriza o abandono da educação e, agora, uma sociedade da desinformação. Para desenvolver-se com este ambiente compreendemos que é preciso se cientificar, ocupar os campos de produção de saber, e fazer uma comunicação não apenas midiatizada, que assimilou a cultura das mídias, mas principalmente, uma comunicação que se enxerga como territorialização, absoluta e relacional, para ocupar não apenas um edifício abandonado como cenário artístico e criativo. Mas ir aos sentidos, às fronteiras de corações e mentes, para realizar transparente diferença, radicalmente cidadã e periférica.
Referências
CASTELLS, M. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar. 2018
DIAS, L. M. A Biblioteca Comunitária Engenho do Mato como estudo de caso de movimento social urbano. Monografia, UERJ, 2018
ELLWANGER, T.M. Jornadas de Junho: 5 anos depois. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Autografia, 2018
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
HAESBAERT, Rogério. Limites no espaço-tempo: a retomada de um debate. Revista Brasileira de Geografia. V.6, n.1, p. 5-20, 2016.
HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016
HARVEY, D. Space as a key word. In: Spaces of global capitalism: towards a theory of uneven geographical development. London: Vers, 2006, p. 117-148.
LACOSTE, Y. A Geografia – Isso Serve, Em Primeiro Lugar, Para Fazer a Guerra. São Paulo: Papirus, 2010.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
MASSEY, Doreen B. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008 cap.6
MEZZADRA, S. & NEILSON, B. La frontera como método: o la multiplicacióm del trabajo (caps. 1,6,7) Buenos Aires: Tinta Limón. 2016.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993.
SACK, Robert. Human Territoriality: A Theory. Annals of the association of American Geographers, Vol. 73, Nº. 1. Mar., 1983
SANTOS, R. C. B. Movimentos sociais urbanos no Brasil. 1a.. ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. v. 1. 175p.
TUAN, Y.-F. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL. 1983.
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*Felipe Rodrigues Siston
Jornalista pesquisador doutor em Comunicação e Cultura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro da autogestão da Biblioteca Engenho do Mato, ocupação cultural em primeiro lugar no Edital de Ações Locais de Niterói (RJ).
Luísa Marques Dias
Professora de Geografia e mestranda em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de Professores (UERJ-FFP). Membro da autogestão da Biblioteca Engenho do Mato e aprendiz de cervejeira.