ISSN 2764-8494

ACESSE

Artes
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Chacovachi: uma dramaturgia do caos

“Muchachos, yo me voy, vengo e empezó la función. ¡Y tengan mucho cuidado en los próximos cincuenta minutos! ¡Porque un payaso malo puede arruinar su vida!”

Chacovachi

Chacovachi, um dos palhaços de rua mais respeitados em toda a América Latina, é conhecido por seu humor ácido, comunicação direta e uma visão de mundo peculiar. Durante a década de 1980, ele ganhou destaque ao se apresentar em praças públicas argentinas, logo após a retomada da democracia na região.

Desde então, sua influência se expandiu para diferentes países, tornando-se uma referência para artistas ao redor do mundo. A performance única de Chacovachi combina elementos de humor, sublimidade e grotesco, proporcionando uma experiência palharesca singular.

No seu livro “Manual e guia do palhaço de rua” (2018), Chacovachi revela os segredos por trás da preparação e criação de espetáculos de palhaço de rua, fornecendo informações detalhadas sobre suas atuações e se tornando uma das principais referências no campo da palhaçaria de rua.

Capa do Manual e Guia do Palhaço de Rua, de Chacovachi.

Na palhaçaria de rua não existe quem vá anunciar o artista, alguém que vá entregar um programa detalhando do que se trata o espetáculo, duração e outros pormenores. Inexiste também uma convocação prévia, salvo se for algum festival de rua, para o público que é cooptado ali naquele momento.

A obra de Chacovachi explora minuciosamente essas etapas cruciais, como a farsa da entrada e a interação com o público por meio da passagem do chapéu, além de abordar os desafios enfrentados por artistas ao se apresentarem em praças desconhecidas.

Para Chacovachi, a dramaturgia do espetáculo do palhaço de rua deve habilmente incorporar e transformar as necessidades em componentes essenciais da performance. A partir desse princípio, ele propõe uma estrutura dramatúrgica que abrange as diversas demandas envolvidas na execução de um espetáculo de rua.

Mas qual é a natureza da Dramaturgia?

Para Chacovachi, o trabalho de um artista está em criticar, denunciar e delirar. A crítica e a denúncia permeiam todo o seu espetáculo e as pequenas piadas que tece no decorrer da apresentação.

A concepção clássica da dramaturgia, no século XVI, compreende a narrativa teatral de um acontecimento específico que produz uma sequência de eventos e conduz à resolução de um conflito.
Entretanto, o espetáculo de rua proposto por Chacovachi não foca em uma narrativa específica, também não existe um conflito específico norteando toda a narrativa.

Entretanto, Chacovachi afirma que a dramaturgia é um sistema que organiza uma sucessão de acontecimentos. Desse modo, a ela estabelece uma espécie de roteiro para o palhaço em sua apresentação.

Assim, ao conclamar a existência de uma dramaturgia do palhaço de rua, Chacovachi não se refere somente a uma sequência de números e rotinas visando meramente entreter o público, mas pretende “criticar, denunciar e delirar” – horizontes que, segundo o artista, devem ser almejados pelos palhaços de rua.

Pré-convocatória

É a etapa em que o artista começa a interagir diretamente com o público e envolvê-lo no espetáculo. Ele utiliza técnicas como gestos exagerados, expressões faciais marcantes e movimentos corporais que chamam a atenção das pessoas.

O palhaço, conforme defendido por Chacovachi, não é apenas um personagem separado da pessoa real, mas sim uma extensão exagerada e dinâmica de si mesmo.

Durante essa fase, a atenção é direcionada para cada detalhe do processo. Ou seja, a todo o processo de delimitação do espaço, da maquiagem em público, do teste do som – e as falhas que ocorrem nesse processo – devem ser dadas a devida atenção.

É nesse momento que o público observa o artista, mesmo que ele não esteja atuando de forma explícita.

Convocatória

Essas convocatórias concentram-se unicamente na tentativa de atrair o público. Chaco propõe que o público que se formou na pré-convocatória atue em cumplicidade nessa etapa, seja com um grito de guerra, uma ola ou algum outro artifício, mas é importante que o caráter de assembleia aqui se faça presente. Unir pessoas desconhecidas e fazê-las trabalhar juntamente com o mesmo propósito é a especificidade dessa etapa.

Em seu espetáculo de rua, Chacovachi pede ao público para se comportar como se estivesse em uma torcida, na arquibancada de um campo de futebol. Uma ola é puxada, a qual o palhaço sempre reclama: “Una mierda la ola!”, mas a segunda também não o agrada. O palhaço dialoga com o público, diz que a ola é a alma do espetáculo e se dirige especificamente para um dos participantes que não levantou o braço e o interpela.

Desse modo, os participantes são conclamados a participar de um número coletivo, que atende às necessidades do palhaço de atrair mais público, resultando em uma espécie de performance coletiva guiada por Chaco.

Nessa etapa, o palhaço atua como um demiurgo, o artesão do caos, que modela e organiza o cotidiano para transformá-lo em caos. A convocatória é o ritual pelo qual as pessoas são levadas a trazer para si a faceta do caos oculta pelo hábito.

A farsa do começo

Pode-se afirmar que as etapas pré-convocação e convocação representam um ritual de presentificação em que os agentes conhecem o artífice e se reconhecem como participantes e, finalmente, passam a contribuir com o artista na tarefa de mobilizar outros agentes para que o espetáculo aconteça.

Além de conclamar o público para dar início à apresentação, Chaco enfatiza importantes informações que devem constar na farsa do início: o nome do palhaço, o título do espetáculo e sua duração e, por fim, que a apresentação é ao chapéu. Entretanto, essas informações não devem ser trabalhadas pelo palhaço de rua de forma que sejam contempladas dentro do espetáculo, surjam dentro de piadas, de modo que o público melhor as assimile:

Para todas essas coisas, que devemos deixar bem claro, há uma estratégia, uma forma como devem ser ditas. O ideal é repetir várias vezes o seu nome e o nome do espetáculo, mas não diretamente, mas como se não fosse intencional; assim ficará mais bem gravado na cabeça do público, do que se anunciássemos como um título formal. Vamos pensar que acabamos de começar, as pessoas não estão completamente envolvidas ainda.

Chacovachi

Primeiro número

Para Chacovachi, o primeiro número é uma etapa crucial para o sucesso do espetáculo de um palhaço de rua: é nesse momento que se ganha a confiança do público e permissão para seguir adiante.

De acordo com Chaco, a criação de uma rotina parte de um pretexto para se estar em cena. Embora não seja malabarista, por exemplo, o palhaço pode jogar malabares, já que o lugar da habilidade no palhaço está dentro do improvável.

Para o palhaço de rua, segundo Chacovachi, a habilidade está mais na atitude que esse artista deve ter para tomar riscos e guiar o público para a expectativa da falha do que na destreza técnica. O público sabe que o palhaço é um personagem que invariavelmente falha.

Assim, no método proposto pelo Chaco, trabalha-se com a expectativa de erro para somente ao fim superá-la. Portanto, em algum momento, o truque ou o desafio proposto pelo artista deve ser executado com precisão.

A atitude diante da técnica, proposta por Chacovachi, revela um importante princípio da palhaçaria, em que mais importante que o fim, é o processo. O processo é o diálogo, a comunicação estabelecida entre artista e público e, para Chaco, a síntese do palhaço está na comunicação:

“No palhaço, a cumplicidade com o público é fundamental. O público não só deve escutar o que você diz, como, também, o que você pensa”

Chacovachi

Número Participativo

Nessa etapa, a assembleia invocada pelo palhaço se evidencia com clareza. É o momento em que é dada voz a alguns ou a todos os espectadores, e com a ajuda deles se desenvolve uma rotina: “o público voluntário é um dos materiais fundamentais de todo espetáculo de rua”.

“a arte do palhaço de rua é sobre antecipar-se a essas reações e trabalhá-las a seu favor. Dependendo de como reage a pessoa, o número vai se armando de um forma ou outra”

Chacovachi

O artista classifica os números participativos em relação ao grau de autonomia que é dado ao participante. Chaco chama de ativo-ativo o participante que é chamado para o centro da roda e deve fazer algo com autonomia. É proposto um desafio em que o convidado possui poder sobre as suas próprias ações. Dependendo da ação da pessoa a rotina pode terminar de maneiras distintas.

O participante ativo-passivo refere-se à pessoa convidada para compartilhar o palco com o artista, mas não incumbida de nenhuma ação. E, por fim, o passivo-ativo que ocorre quando o convidado responde aos comandos do palhaço do seu lugar, sem necessitar entrar na roda, podendo ser individualizado, o palhaço elenca alguma pessoa específica ou o público todo realizando um número coral em que todos participam.

O chapéu

Segundo Chacovachi, um profissional é aquele que vive de sua profissão. Nesse sentido, a/o artista conseguir obter meios de sobreviver com o seu trabalho é parte fundamental da dramaturgia estabelecida por Chaco.

A passagem do chapéu é um momento profundamente disruptivo em sua essência. É um ato de resistência aos imperativos dados pela privatização dos espaços de arte. O Estado pode asfixiar conteúdos críticos e censurar alguns artistas retirando verbas, fechando centros culturais e até criar um mecanismo autoritário que propaga para a população que o artista é um inimigo dos valores que instauram a ordem.

O artista que rompe esses grilhões e consegue comunicar-se diretamente com o público abre uma janela de oportunidade para que caos criativo chegue ao público. Desse modo, a dramaturgia do caos se revela como um potente meio para a autonomia do artista, em relação a instituições, e dar vazão ao seu cosmos criador.

se você é capaz de sair de tua casa sozinho (ser palhaço é algo que se faz por conta própria) chegar a uma praça (…) e depois passar o chapéu, vender bexigas, ou o que o cara da farmácia ou do evento ou da festinha infantil te tenha pagado, juntar tuas coisas e voltar vivo para casa, então, ninguém, mas ninguém poderá dizer que você não é um palhaço.

Chacovachi

Despedida e Final

Todas essas etapas culminam no desfecho do espetáculo de rua. Durante o espetáculo, o palhaço convocou a assembleia, deliberou a pauta cômica a ser trabalhada, ritualizou a convocação da plateia, tornou os deliberantes cúmplices na convocação e no novo cosmos que ali se criou, fez emergir o lugar no não-lugar, revelou o caos como potência e criação oculto no cotidiano, o artista foi recompensado pelo seu trabalho e agora deve concluir o espetáculo.

Após todas as etapas que o artista percorreu com o público, cria-se uma atmosfera familiar entre palhaço e público: compartilharam risadas, participaram de alguns dos números e realizaram o pagamento pelos serviços do artista. Tudo isso culmina em um ambiente que desarma o público para a mensagem que aqui o artista pode inserir.

Chacovachi enfatiza que, nessa última etapa, o artista deve comunicar novamente ao público o seu nome, o título do seu espetáculo, quando voltará ou estará se apresentando.

O artista propõe que se o palhaço for efetivo será capaz de inspirar outros palhaços e se dissolver em sua arte, culminando no fim da jornada do palhaço de rua cuja glória está em se desfazer na prática de outros artistas – ser assimilado e compreendido pelas pessoas, influenciar outros artistas até o momento que as rotinas criadas pelo artista se tornem anônimos, pertencentes ao território das ruas e agregando ao repertório das gerações que estão por vir.


Paulo Correia é artista circense, historiador e desenvolvedor. Atua na fronteira entre arte, educação e tecnologia buscando entender os modos de ser e estar no mundo.

Este artigo foi elaborado a partir da dissertação de mestrado do autor “Palhaçaria de rua: uma dramaturgia do caos”, defendida na UERJ. Adaptação de Simone Machado.

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