“Quilombo é uma história. É uma palavra que tem história”, escreveu a historiadora Maria Beatriz Nascimento (1942-1995).
“É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico, mas o território a nível duma simbologia. Nós somos homens. Nós temos direitos ao território, à terra. Várias e várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito ao espaço que ocupo na nação.”
Quilombo, território e corpo são conceitos que a também professora, ativista e poeta nascida em Aracaju (SE) trabalhou durante toda uma vida de movimentos. Formada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela deslocou-se entre academia e militância no movimento negro, confrontando ambientes universitários ensimesmados e tecendo um pensamento histórico a partir de vivências e andanças.
“O percurso da Beatriz Nascimento foi fracionado. Ela entra na universidade como uma mulher madura de 28 anos. Depois de se formar em História, vira professora da rede pública do Rio de Janeiro e tenta continuar seus estudos no mestrado, mas é boicotada dentro da universidade, pela forma como pensava História. Ela nunca deixa a pesquisa, mas ao mesmo tempo, foca na militância, trilhando outro caminho”,
resume Rodrigo dos Reis, doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e que está preparando o lançamento de um livro sobre a obra de Beatriz.
A trajetória e produção fragmentada da historiadora foi compilada e analisada em produções como Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, do sociólogo Alex Ratts, e também no trabalho de preservação dos textos por Bethânia Gomes, filha da historiadora e que junto com Ratts reuniu a produção poética e ensaística no livro Todas [as] distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento.
Dentro da universidade, a obra dela ainda é pouco discutida , mas vem ganhando espaço como objeto de estudo em mestrados e doutorados de uma nova geração de pesquisadores. Para Patrícia Batista, mestranda em crítica cultural pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e autora do artigo A perspectiva do quilombo sob o olhar da escritora negra Beatriz Nascimento, é justamente essa trajetória de vida multiterritorial que permite a contemporaneidade do pensamentos da historiadora.
“Ela é muito atual. Todas as coisas que ela escreveu e pensava com relação à ser mulher, negra e nordestina ainda podem ser utilizadas hoje”.
Basta ver este enxerto escrito pela pesquisadora em 1974 (Disponível no livro Eu Sou Atlântica), sob as problemáticas de se estudar história a partir dos referenciais brancos da academia:
“Não podemos aceitar que a História do Negro no Brasil, presentemente, seja entendida apenas através dos estudos etnográficos, sociológicos. Devemos fazer a nossa História, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos, estudando-os, não os enganando. Só assim poderemos nos entender e fazer-nos aceitar como somos, antes de mais nada pretos, brasileiros, sem sermos confundidos com os americanos ou africanos, pois nossa História é outra como é outra nossa problemática”.
Beatriz Nascimento
A memória no corpo negro
Segundo pesquisadores da vida e trajetória de Beatriz Nascimento, há uma radicalidade em seu pensamento como historiadora. Nos anos que estudou e se deslocou, Beatriz criou, em sintonia com pensadores como Lélia Gonzales e Abdias do Nascimento, uma análise histórica a partir de pensamentos e práticas de matriz africana e afro-brasileira, negando a historicidade normativa circunscrita a pensadores europeus.
É na diáspora transatlântica entre África e Brasil, em que sujeitos negros trazem consigo os saberes de suas culturas e territórios, deixando para trás nações hoje inimagináveis e produzindo aqui novas formas de viver e saber, que Beatriz basilou sua pesquisa, como explica Rodrigo dos Reis:
“Ao se deslocar, o corpo negro suporta dois continentes de memória. Aqui ele teve que inventar sua própria história e ela passa pelo corpo, porque além de ser guardião da memória, o corpo foi a matéria a ser utilizada e buscada. Para nós negros estarmos hoje no Brasil, em algum momento da história alguém foi buscar um corpo negro.”
Para Rodrigo, o que Beatriz traz nos seus escritos é que a África do passado não existe mais:
“O que o negro em diáspora fez? Ele criou seu próprio mundo. E dentro desse lugar, que são os quilombos, ele cria essa nova identidade. Quando acabaram os quilombos em termos históricos, por causa da repressão, ele vem a ser simbologia. Aí entra o corpo e a memória; Quem carrega o quilombo são os próprios corpos negros.”
Rodrigo dos Reis
O pensamento histórico de Beatriz Nascimento, a partir do território e do corpo, encontra uma síntese audiovisual no filme Orí (1989), dirigido por Raquel Gerber. O documentário narra os movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, tendo o quilombo como ideia central e a oralidade da historiadora como guia dessa história.
“Orí é uma palavra iorubá que está relacionada com a questão da religiosidade matriz africana. É um conceito polissêmico, mas uma das definições possíveis é corpo – cabeça – território. O Orí seria a ligação, ou a descrição de todos esses elementos trabalhando juntos: Uma pessoa de pé descalço dentro do terreiro se conectando com seus antepassados em um momento sem passado e sem futuro. Isso para a Beatriz como historiadora é muito importante. Ela usa essa metáfora para dizer que é possível renascer, que o negro tem uma história ser contada”
Rodrigo dos Reis
O quilombo como espaço simbólico no corpo em movimento
Entre 1974 e 1996, a pesquisa de Beatriz Nascimento voltou-se para os quilombos. Seus exercícios de contextualização e ampliação do conceito aconteciam em dois âmbitos. Um era o histórico, em que ela criticava a falta de olhar para os quilombos tanto como formação histórica e potência ideológica. No outro, ela fez um deslocamento transatlântico, viajando até países como Angola para entender o porquê e como se constituíram os quilombos de lá, como influenciaram os brasileiros, que se tornaram territórios distintos, de formação do ser e estar do sujeito negro.
“O que ela procura dentro dos quilombos é um continuum (modo contínuo) da história. Existia uma forma de ser e estar no mundo que foi desenvolvida dentro dos quilombos e não se encerrou ali. Beatriz não faz uma transposição direta – que o que era quilombo virou favela ou terreiro de candomblé – mas ela entende que há uma certa transmissão psíquica, de um ethos (conjunto de valores, comportamentos e culturas de uma determinada coletividade, época ou região) de ver e estar no mundo que foi criado nessas relações aquilombadas”.
Rodrigo Reis
De acordo com o historiador, foi estudando não só formações clássicas de quilombos, como Quilombo dos Palmares, mas também terreiros de candomblé de Recife e Salvador, que o corpo assume seu lugar de importância na historiografia de Beatriz. Em principal, o corpo em movimento, e que por estar em movimento, consegue tornar a história do negro sempre em constante renovação.
“Antes da instituição e do território quilombo, existe a instituição fuga. Para se ter quilombo, existem corpos em fuga procurando humanidade. Ela como poeta entende a fuga no simbólico, ou seja, não só como forma histórica de como esses homens e mulheres planejavam suas vidas, mas também do corpo e o movimento em busca dessa humanidade. Como se dá essa humanidade? Quando esses corpos se reconhecem entre si, quando estavam no quilombo”
A pesquisadora Patrícia ainda traz a questão para movimentos ainda mais atuais:: “Quando o negro se junta em movimentos do hip-hop, quando está no terreiro, na favela, ali se constitui uma espécie de quilombo também. Beatriz Nascimento fala que é difícil para um branco entender o quilombo, porque é um espaço negro tão negro que o negro pode ser ele mesmo ali.”
Embora a trajetória de Beatriz tenha sido interrompida de maneira brusca por violências que ela nunca deixou de denunciar nas suas trajetórias acadêmicas e de militância – a historiadora foi vítima de feminicídio – o que ela deixou para o mundo foi a impossibilidade de que sua própria pesquisa ficasse parada no tempo. Porque é do movimento que o pensamento e a produção negra se alimenta, como Rodrigo conclui:
“A nossa história, a história negra, está sempre sendo contada, ela não é estagnada. É isso que Beatriz tenta mostrar. São negros em movimento dentro do movimento negro que fazem a história. Podemos expandir isso para todos os territórios e lugares. Precisamos estar em movimento e em fuga, contra essa antivida que tenta tirar nossa força vital. Esse é o desafio da população negra no Brasil. Estar em movimento.”
Cecília Garcia é jornalista com experiência em cobertura de educação, direitos humanos e direito à cidade.
A produção desta reportagem não teria sido possível sem a leitura do trabalho das pesquisadoras Débora Alcântara e Maria Pinn. Débora Alcântara é doutoranda no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG) e escreveu o artigo A categoria política quilombola na encruzilhada: um olhar possível do encontro das vertentes epistêmicas decolonial e das autoras amefricanas Beatriz do Nascimento e Lélia Gonzalez. Maria Pinn é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto e escreveu o artigo Beatriz Nascimento e a invisibilidade negra na historiografia brasileira: mecanismos de anulação e silenciamento das práticas acadêmicas e intelectuais.
Esta matéria foi publicada na Revista Educação e Território.