Nota do editor e tradutor(*)
O texto de Lalander e Cuestas-Caza, que nossa curadoria selecionou e traduziu para incluí-lo na edição de Equinócio de primavera da Revista Pluriverso, traz uma importante e politicamente pertinente reflexão sobre o conceito de Sumak Kawsay e a sua adaptação acadêmica e política a partir da sua tradução à língua castelhana, ou espanhol: buen-vivir.
Esse mesmo conceito possui sua tradução ao português, sendo a mais comum ‘Bem viver’, pela qual optamos na nossa tradução. Mas, mesmo que estejamos de fato falando do mesmo conceito, é importante alertar ao leitor sobre o fato do presente artigo se referir ao conceito em espanhol, e que caberiam outras considerações e reflexões sobre sua tradução a mais uma língua.
Os autores, publicaram um trabalho muito mais aprofundado sobre Sumak Kawsay e Bem Viver em Equador. Nele, apresentam estudo comparado entre as três correntes de interpretação que estudam o conceito indígena traduzido com Buen-vivir, e em português, Bem-viver: indígena-culturalista, pós-desenvolvimentista-ecologista e eco-socialista-estatista.
Você pode acessar esse texto em pdf aqui (em espanhol).
Sumak Kawsay e Bem-Viver
O interesse da academia pelos termos Sumak Kawsay e Bem-Viver, a partir de sua inclusão nas constituições do Equador e da Bolívia, tem crescido enormemente na última década. A construção e discussão teórica contínua têm posicionado o Sumak Kawsay (Suma Qamaña na Bolívia) e o Bem-Viver como alternativas ao discurso desgastado do desenvolvimento.
Essa discussão teórica, em sua maioria, tem equiparado ambos os conceitos ao ponto de naturalizá-los como sinônimos. No entanto, considerando os códigos e os significados simbólicos em cada idioma e cultura, traduzir Sumak Kawsay como Bem-Viver (Buen-Vivir) resulta em uma simplificação arriscada.
Problematizar a tradução trouxe à tona a discussão sobre um possível extrativismo cognitivo, como uma forma de neocolonialismo através do uso sofisticado da linguagem.
Sumak Kawsay representa o ideal do projeto social indígena, entendido como uma proposta epistêmica baseada nas instituições e formas de vida andino-amazônicas. Sumak, por exemplo, é traduzido como: plena, bela, esplêndida, excelente; e Kawsay, como: vida, existência, até mesmo como cultura, porque para os povos ancestrais amazônicos e andinos, a vida é cultura e a cultura é vida.
Nesse sentido, é importante entender o Sumak Kawsay como um conceito que surge e existe em um contexto particular e está em constante construção, oscilando entre uma reapropriação pelos povos originários (e pelo Movimento Indígena) e uma readaptação pela academia.
No entanto, as tensões semânticas e de tradução foram apenas o prelúdio de diversos trabalhos que começaram a problematizar outras diferenças epistemológicas, ontológicas e políticas entre ambos os conceitos.
As diferenças extralinguísticas têm sido evidenciadas em grande parte graças às práticas contraditórias do Equador e da Bolívia em relação a:
a) políticas públicas neo extrativistas progressistas;
b) conflitos do Estado com os povos indígenas pelo território;
c) e os direitos da natureza.
O Equador e a Bolívia têm sido laboratórios que têm mostrado a heterogeneidade do construto do Bem-Viver.
No Equador, um dos exemplos mais relevantes é a experiência da comunidade quíchua-amazônica de Sarayaku, que, para vários autores, é o berço discursivo/empírico do Sumak Kawsay.
As três versões do Bem-Viver
Existe um certo consenso em identificar três versões do Bem-Viver:
Eco-socialista-estatista, pós-desenvolvimentista-ecologista e indígena-culturalista. Cada uma dessas versões tem estado ancorada em uma corrente epistêmica que tem interpretado e defendido sua própria versão do Bem-Viver. Além disso, dentro da categoria indígena-culturalista, existem diferentes percepções e interpretações também entre os diferentes povos, nacionalidades e comunidades.
A corrente pós-desenvolvimentista-ecologista tem sido a que mais difusão tem dado ao conceito, levando-o para a arena internacional. Isto porque ela se conecta mais facilmente aos debates sobre decrescimento, justiça ambiental, abordagens críticas da ecologia política e movimento de transição, entre outros.
Trata-se de um Bem-Viver reconceitualizado e readaptado ao contexto complexo marcado pela crise ecológica, pelas profundas desigualdades sociais e pela crítica à hegemonia capitalista. Não surpreende que atualmente se trabalhe nos Objetivos do Bem-Viver Global (BVG), que, futuramente, poderiam servir como substituição da atual Agenda ODS 2030.
Além disso, essa versão pós-desenvolvimentista-ecologista do Bem-Viver tem a vantagem de ser, em comparação, mais comunicável, compreensível e aplicável nas sociedades do Norte. Ou seja, é mais fácil a desindigenização conceitual e prática, especialmente quando contrastada com a interpretação indígena-culturalista, que inclui mais referências ao cosmos e aos espíritos ancestrais das ontologias amazônicas e andinas.
O nascer e o declínio do Bem-Viver equatoriano 2008-2018 tiveram pelo menos três implicações: a) a internacionalização do debate intelectual do Bem-Viver como utopia pós-moderna-pós-capitalista em construção; b) uma revalorização dos saberes dos povos originários do Abya Yala; e c) um fortalecimento das epistemologias do Sul, especialmente uma renovação do pensamento crítico latino-americano.
É possível (ou necessário) desindigenizar o Bem Viver/Sumak Kawsay?
O desafio atual para a pesquisa do Bem-Viver e o Sumak Kawsay é complexo e requer não apenas uma abertura ao diálogo, mas a desconstrução do conhecimento eurocêntrico e a desconexão das relações de poder moderno-coloniais. O desprendimento e a desobediência epistêmica decolonial se tornam não apenas necessários, mas urgentes. Além disso, continua pendente uma discussão mais ampla e construtiva sobre a relação entre Sumak Kawsay, plurinacionalidade, interculturalidade e descolonização, para além da região andina.
Finalmente, o mundo pode aprender muito das iniciativas andino-amazônicas e as diferentes correntes de pensamento devem continuar problematizando as questões pendentes em suas dimensões mais filosóficas. Como, por exemplo, O que os conceitos de bem comum, bem-estar, progresso, desenvolvimento, coexistência, etc., realmente significam a partir de diferentes perspectivas? O que significa Sumak Kawsay além das fronteiras dos povos originários (por exemplo, em ambientes urbanos)? É possível (ou necessário) desindigenizar o Bem Viver/Sumak Kawsay? O Bem Viver pode realmente ser uma alternativa intercultural? Até que ponto o Sumak Kawsay pode ser considerado um projeto transmoderno?
As respostas a estas e outras perguntas, expressas nesta publicação, permitirão enriquecer o debate com vistas à construção, não de sociedades melhores, mas de sociedades mais justas.
Rickard Lalander é catedrático e Docente-Pesquisador em estudos de desenvolvimento e meio ambiente da Universidad de Södertörn, Suecia. Doutor e catedrático em estudos latino-americanos e estudos políticos e econômicos, Universidade de Helsinque. Supervisor e instrutor do programa de doutorado em estudos socioculturais.
Javier Cuestas-Caza da Escuela Politécnica Nacional, do Ecuador. Docente-Pesquisador no Departamento de Estudos Organizacionais e Desenvolvimento Humano. Candidato a Doutor no Programa de Desenvolvimento Local e Cooperação Internacional da Universidade Politécnica de Valência (Espanha). Mestre em Administração Pública.