ISSN 2764-8494

ACESSE

Artes
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Arqueologias do Futuro | outras ruínas, novas cidades

Espetáculo Arqueologias do futuro - foto: Rodrigo Menezes
Espetáculo Arqueologias do futuro – foto: Rodrigo Menezes

Toda noite eu sonhava que eu tava correndo. eu corria. corria. corria. o chão era de asfalto, tava sol. e o chão quente. eu tava descalço e sem camisa e eu corria. corria. corria. corria. corria. corria. e o chão quente que eu pisava me fazia correr mais rápido, mais e mais longe. e eu corria. e isso me fazia rir. eu ria e gargalhava. a cidade vazia. eu e a rua. uma avenida comprida. prédios. um rio.


uma rua comprida e larga, um campo. Da Canitá pro Largo do Bulufa. E o beco. O beco que não parece beco. Corro pelos cantos, pelas calçadas, ando pelas paredes.
era como se meus músculos sonhassem. eu sonhava o sonho dos meus músculos.
acordo cansado. era a melhor sensação dentro daqueles dias e dias trancado em casa.
Desde os meus 18 anos eu tenho um sonho que se repete constantemente. eu sonho, constantemente, esse sonho. essa rua. a sensação de prazer de correr.
Durante a pandemia de COVID 19 esses sonhos se intensificaram. quase dia sim dia não eu sonhava que tava correndo. e eu corria. mas eu não corria com aquele aperto no peito de quem tá atrasado – e parece que estou sempre atrasado, sempre atrasado. não corria com medo. eu corria era com uma sensação de prazer, era como se eu e aquela cidade fossemos um. como se os rios, os prédios, as casas, fossemos um a extensão do outro.
quando eu era criança, todo dia de manhã a gente tomava café juntos, eu minha avó, minha mãe e meus tios, sempre tinha mais gente. como dizia minha vó: debaixo de algum teto, todo chão é cama.


No café a gente geralmente conversava sobre os sonhos daquela noite. meu nome é mauricio, sou artista do corpo e da cena, tenho 33 anos, e nasci e me criei no Complexo do Alemão – um dos maiores complexos de favela do Rio de Janeiro, na zona norte da cidade. e na casa onde eu cresci funcionava o terreiro da minha avó, que era mãe de santo. um terreiro de umbanda. a gente sempre falava dos sonhos, e minha avó sempre fazia algum tipo de leitura deles. e aquilo tinha uma importância, aquelas leituras influenciavam de forma direta decisões, posturas, que a gente tomava diante do sonho e da leitura da minha avó. cada elemento do sonho trazia um significado. sonhar com fotografia = traição, água limpa = a choro, tristeza, água turva = alegria. sonhar arrancando dente, ou perdendo um dente significava morte – eu tinha pavor de desse. e tinha ainda que saber quais dentes eram porque cada um tinha um significado.


mas foi dessa minha vó que eu ouvi pela primeira vez a frase: “vou na cidade” – se referindo ao centro. eu lembro do meu cérebro bugando a primeira vez que ouvi isso. e aí comecei a prestar mais atenção e todo mundo falava assim: ah, lá na cidade. ‘leninha tá trabalhando na cidade”. “voltei tarde da cidade”.


eu ficava pensando: se aquilo é cidade, isso aqui é o que? se eu tô fora da cidade, onde eu tô? a gente morava no Complexo do Alemão, em Ramos. tipo 13 km de distância do centro e aqui não é cidade? aqui é favela. é morro. num é morno não. é morro. quente pra caralho.

(texto da peça-performance “Arqueologias do Futuro”, idealizada pelo ator e performer Mauricio Lima)

A Residência

Em março de 2022, iniciei um projeto de residência artística dentro do Complexo do Alemão a partir dessa provocação que minha avó deixou em mim. A residência se chamava “Arqueologias do Futuro – outras ruínas, novas cidades”. E dava continuidade a um programa performativo, criado e executado durante a pandemia, que consistia em duas ações: uma performance virtual e uma série de encontros realizados com artistas, ativistas, pensadores negros de várias cidades do Brasil e de alguns países do mundo. Nesse programa, eu fazia uma espécie de visita mediada pública e virtual ao acervo do Museu dos Meninos, e a partir do encontro com esse acervo de memórias do Museu, compartilhamos estratégias para escurecer futuros.

Diante da falta de horizonte daquele momento, nos reuníamos para imaginar futuros possíveis e impossíveis a partir de diferentes perspectivas negras. Esse programa foi realizado durante os anos mais intensos da pandemia, 2020 e 2021.

O museu dos meninos

O Museu dos Meninos é um projeto de pesquisa artística que comecei a desenvolver em 2019. Ele é uma obra-museu (OBRA, NO SENTIDO DE CONSTRUÇÃO, BATER LAJE, LEVANTAR PAREDE), uma plataforma que investiga e desenvolve procedimentos artísticos/performáticos a partir do mapeamento, da coleta e da preservação de memórias negras, experimentando diferentes suportes de inscrição dessas memórias a partir de uma perspectiva favelada; criando um acervo de memórias que contribui na ressignificação da imagem estigmatizada das favelas e especificamente na imagem do Complexo do Alemão.

O MdM é uma espécie de museu virtual, feito a partir de uma série de ações no campo do audiovisual, das artes cênicas e visuais. seu principal acervo é uma série de videos-depoimentos de jovens negros moradores do CPX, onde, 28 homens e 2 mulheres transexuais, num exercício de auto-representação, compartilham suas perspectivas sobre a favela, sobre masculinidades, amor, paternidade, violência e sobre futuro. Futuros… criando um acervo de memórias vivas, escritas com o corpo-voz de cada uma – corpos que somos constantemente violados, violentados, apagados. 

Eu cresci vendo pessoas morrendo e tendo suas histórias contadas por outras pessoas, que deturpam, alteram essas histórias para justificar um projeto de genocídio preto e pobre, que além de matar nossos corpos, também apagam nossas memórias.

A gente não existe?

Pra me vingar desse projeto, eu criei um museu. Um museu como vingança. Vingança coletiva, pra rasurar, criar uma fenda, abrir becos para que nossas palavras, corpos, imagens e sons sejam uma cicatriz no tempo. É pra ferir a História que nos mata e que agora não se esquecerá de nós.

Voltando para residência, ela foi desenvolvida em parceria com os artistas Fabiano Dadado de Freitas (diretor e dramaturgo), Juracy de Oliveira (ator e diretor) e Nely Coelho (produtora e atriz), que colaboram com o Museu dos Meninos desde sua criação.

Foto do grupo Museu dos Meninos.
Foto arquivo MdM

Imaginários de favela

O programa da residência consistia em convidar 4 artistas moradores do Complexo do Alemão para investigar os imaginários de favela e de cidade, em interlocução com 3 artistas que desenvolvem em suas pesquisas relações com as cidades e os espaços urbanos. Os 4 artistas residentes são Diogo Nunes, Hugo Dullahan, Igor Santos e Yan Pereira. Os artistas interlocutores são:

Filipe Graciano (Petrópolis / RJ) – arquiteto, urbanista, professor e fundador do Projeto Afro Petro e do Museu da Memória Negra de Petrópolis.

Keyla Serruya (Manaus/AM) – artista visual e realizadora audiovisual – O trabalho de Keyla é voltado às questões ligadas à ancestralidade negra e gênero, e compreende a rua como espaço de diálogo com a cidade, produzindo instalações audiovisuais que exibem filmes, fotos e videoartes em espaços urbanos.

Marwa Al-Saouboni (Síria) – Marwa desenvolve uma potente reflexão sobre a reconstrução física e simbólica das cidades destruídas pela guerra. Conhecer o trabalho dela foi extremamente instigante para pensar esses dois territórios em relação: a Síria e o Brasil, fazendo um recorte da cidade do Rio de Janeiro e as favelas.

Encontro com Marwa Al-Saouboni - foto: arquivo MdM
Encontro com Marwa Al-Saouboni – foto: arquivo MdM

Brasil e o conflito na Síria: Uma comparação chocante

Em 2018, uma matéria publicada pela Folha de São Paulo, comparava os números de mortes violentas no Brasil com as mortes causadas pelos conflitos armados na Síria. E os números do Brasil, naquela época, eram maiores do que os do país que vive uma guerra civil declarada.

Cada um desses lugares vive um estado de guerra. Aqui nossa guerra é explícita, mas não declarada. O que podemos partilhar e desenvolver coletivamente a partir desses dois territórios? O que, na distância continental que nos separa, nos une?

A primeira coisa que Marwa nos disse foi que, o que temos de melhor a partilhar entre esses territórios não existe a partir da relação com a guerra e nos convidou a olhar para a forma como nós construímos, porque a forma como construímos reflete a forma com a gente vive. A partir desse ponto, começamos a pensar nas formas como a gente constrói, não apenas arquitetonicamente, mas como construímos, criamos, políticas públicas, processos artísticos, imaginários.

Encontro com Keyla Serruya - foto arquivo MdM
Encontro com Keyla Serruya – foto arquivo MdM

E como se constrói uma favela? Como se constrói uma cidade?

Nessa residência desenvolvemos um conjunto de procedimentos de criação site specific a partir do levantamento de memórias individuais e coletivas relacionadas ao território e às pessoas que vivem ali, a partir da relação, percepção e experiência de cada artista com o Complexo do Alemão e com a cidade do Rio de Janeiro. Os procedimentos foram desenvolvidos como continuidade às criações do MdM, que tem como principal característica o trabalho coletivo.

Série de 30 vídeos-depoimentos realizados em 2019, com jovens negres moradores das favelas que compõem o Complexo do Alemão – Rio de Janeiro / Brasil.

O vendedor de bolas

Intervenção urbana Homem-Bola - foto: Diogo Nascimento
Intervenção urbana Homem-Bola – foto: Diogo Nascimento

Um dos procedimentos que realizamos são os “inventários” que dão acesso a memórias coletivas e individuais do território, numa busca de figuras importantes e presentes no imaginário coletivo da favela. Esse foi um exercício que deu origem à performance Homem-Bola, realizada como uma das primeiras ações do MdM em 2019 – quando reconstruímos poética e performaticamente a figura do vendedor de bolas, presente nas ruas da favela nas décadas de 1990 e 2000 e que foi desaparecendo das ruas.

Na residência, começamos a levantar essas figuras que fazem parte do imaginário afetivo de cada artista relacionada ao território. A partir desse inventário, fomos desenvolvendo intervenções urbanas – já que ao pensarmos a cidade e o espaço urbano o chamamento para atuar na rua era direto. Estar na rua artisticamente depois de tanto tempo era um desejo, uma necessidade de poder dialogar e criar relações com esse território que nos oferece toda uma gama de possibilidades de invenção de novos mundos e de novos modos de produção artística e de vida.

O inventário não é apenas uma “listagem” de nomes e pessoas, mas um espaço de invenção, um espaço de re-invenção, onde a gente joga com as dimensões de documento/realidade e ficção/invenção – na verdade, para nós, essas dimensões não são opostas, mas sim amalgamadas – o documento é uma ficção, e a ficção é um documento que escrevemos e criamos a todo momento, mesmo quando não percebemos.

Viver a cidade a partir da ficção é um ato político de reinvenção de mundos.

Realizamos 4 intervenções urbanas nas ruas do Complexo do Alemão e na estação de trem de Bonsucesso.

Pipeiro – poesia e lambe-lambe – criação e instalação performática de lambe-lambe em 5 pontos do Complexo do Alemão. Essa ação visita uma brincadeira tradicional nas favelas, que são as pipas. Os pipeiros são as pessoas que fazem pipas. Essa prática foi diminuindo com o passar dos anos. No lambe-lambe está a ilustração de uma pipa e uma poesia, escrita e desenhada por Yan Pereira, poeta e integrante do Slam da Laje.

Fogueteiro – corpo e palavras em ação – essa ação reconstrói a figura dos fogueteiros – que são as pessoas responsáveis por dar avisos ao tráfico através de fogos de artifício. Cada sequência sonora de efeito explosivo comunica uma mensagem específica. Os fogueteiros são as figuras que estão na linha de frente, geralmente esse cargo é ocupado por meninos muito novos ou adolescentes. São os primeiros a morrer quando um conflito se inicia. São crianças, que foram levadas ao tráfico por conta da pobreza, da falta de perspectivas, pela solidão. Os fogos são transformados em balões coloridos que quando estouram anunciam falas colhidas por Igor Santos pelas ruas da favela durante suas idas e vindas para nossa residência.

Costureira + varal – instalação – essa ação é uma homenagem às costureiras do Complexo do Alemão. Essa instalação é uma escultura feita com carcaça de máquina de costura e tecido com impressão de fotos do complexo do alemão tiradas por Diogo Nunes, é uma construção do artista que vem de uma geração de costureiras em sua família. A escultura foi instalada em uma das entradas da favela, na Grota. A escultura era composta por um áudio com depoimentos das tias costureiras de Diogo. Como se elas costurassem as histórias da favela.

Costureira + varal - instalação - foto
Costureira + varal – instalação

Benzedeiro – plantio e presença – a ação consiste no plantio de ervas de cura de Benzeção em 4 pontos distintos da favela: Praça do Coqueiro; Rua Nova, perto da creche; Rua Nova, subida da Alvorada e Grota.
Inicialmente, tínhamos outra ideia para esta ação, mas nos deparamos com um processo de perseguição e censura de práticas religiosas de matrizes africanas e indígenas dentro da favela. Essa censura, praticada pelo tráfico, faz parte de um longo processo de ascensão das igrejas neopentecostais aos espaços de poder – seja no congresso, ou com o tráfico.

Hoje, no Complexo do Alemão, estão fechados os terreiros e toda e qualquer prática é proibida, com ameaças à integridade física das pessoas. Nós sentimos medo. Mas não podíamos parar diante disso então fizemos essa ação, uma ação quase invisível, que evoca toda essa ancestralidade mas aqui disfarçada no simples (e revolucionário) ato de plantar.

Uma performance invisível existe?

A maneira que a gente constrói reflete a maneira que a gente vive. Essa provocação trazida por Marwa nos acompanhou durante toda nossa jornada. Ficamos atentos às maneiras que a gente constrói, começamos a observar as casas, as ruas, as pessoas, as histórias, todas as formas e procedimentos de construção, de criação de vida que a gente produz/inventa, que a favela enquanto corpo coletivo inventa, propõe, seja pela arquitetura, geografia, seja pelas questões sociais, políticas, culturais/ancestrais, seja em resposta à violência. Uma construção que se faz a partir, sob e sobre as ruínas, e muitas vezes de suas próprias ruínas.

Série de 30 vídeos-depoimentos realizados em 2019, com jovens negres moradores das favelas que compõem o Complexo do Alemão – Rio de Janeiro / Brasil.

A favela é cidade e a cidade – como o Rio de Janeiro – precisa da favela. É como se ela, a favela, fosse o esqueleto que sustenta esse corpo, a cidade.

A favela também é um organismo vivo em constante transformação e construção – uma favela que se engendra, se engravida e se pari sempre, inventando e multiplicando a vida.

Voltando ao Subúrbio do Chico, que olha pra gente lá do des-avesso da montanha. Do lado de lá.
A gente tem falado há muito tempo. Do lado de cá.

Maré
Madureira
Pavuna
Inhaúma
Cordovil, Pilares
Irajá
Encantado, Bangu
Realengo
Sao Joao de Meriti
Nova Iguaçu
Paciência

haja paciência….

e vocês daí. escuta.


Maurício Lima é ator, bailarino e performer formado pela Escola de Teatro Martins Pena e graduando do curso de Teoria da Dança, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua junto ao grupo Teatro de Extremos e o Coletivo Líquida Ação, em paralelo à sua pesquisa artística autônoma. Criador do Museu dos Meninos em 2019.

MdMMuseu dos Meninos é uma obra-museu composta por uma série de ações nos campos do audiovisual, das artes cênicas e visuais, com a premissa de mapear, preservar e criar memórias dentro do Complexo do Alemão, como exercício contínuo e coletivo de futuridades impossíveis para o povo preto e favelado.

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