No universo da Música Popular Brasileira, poucas figuras são tão complexas e fascinantes quanto Jards Macalé. Morto em novembro de 2025, aos 82 anos, o artista carioca desafiou o mercado, reformou a MPB e cultivou uma persona que mesclava o erudito e o popular, a vanguarda e a tradição.
Longe do rótulo de “maldito” que a mídia tentou lhe impor, Macalé preferia a definição de “anjo torto”. Esta alcunha referenciava a Drummond e capturava sua essência: um ser desajustado, mas fundamental no centro da moderna música brasileira.
quando eu nasci
um anjo louco
um anjo solto
um anjo doido,
veio ler a minha mão (…)
e eis que o anjo me disse
apertando a minha mão
entre um sorriso de dentes
vá, bicho,
Desafinar do coro dos contentes
“Let’s Play That” (Jards Macalé e Torquato Neto), do álbum Jards Macalé (1972)
A Performance Como Linguagem
A identidade artística de Macalé era, certamente, indissociável de sua performance. No palco ou na tela, ele era um provocador nato. Sua presença cênica, por vezes teatral e intensa, subvertia a expectativa de um “show” convencional. Macalé utilizava o corpo, as expressões e o próprio silêncio como elementos de sua música.
Essa característica performática é, assim, um dos eixos centrais de análises acadêmicas e documentários que buscam decifrar sua obra. Filmes brasileiros exploraram como suas performances iam além do canto, inserindo o músico em uma “cena” onde a atitude era tão importante quanto a nota.
Sua recusa em se enquadrar em padrões comerciais e sua atitude altiva e contestadora traduziam-se em uma presença que hipnotizava e, por vezes, incomodava o público acostumado a fórmulas mais palatáveis.
O Multi-instrumentista e a Ruptura Sonora
Antes de ser o ícone performático, Jards Macalé era, aliás, um músico de formação sólida e um multi-instrumentista virtuoso. Sua genialidade residia na capacidade de romper barreiras entre gêneros musicais, misturando samba de breque, bossa nova, xaxado e o experimentalismo da vanguarda.
Ao longo da sua carreira, Macalé pôde estudar com músicos importantes. Entre outros, estudou piano e orquestração com o maestro Guerra Peixe, violoncelo com o docente da Unesp Peter Dauesberg, guitarra com Turíbio Santos e Jodacil Damasceno, e análise musical com Esther Scliar.
Essa versatilidade ficou evidente em seus arranjos e na concepção musical de discos alheios. Certamente, o álbum “Transa” (1972), de Caetano Veloso, é um exemplo importante. A contribuição de Macalé para a sonoridade inovadora do disco ajudou a considerá-lo um dos mais importantes álbuns da MPB. Ele não apenas tocava, ele reinventava a estrutura da canção popular, usando a instrumentação de forma inusitada e desafiadora.
Desvendando o “Morcego”
O impacto do trabalho artístico de Jards gerou interese crescente, de modo que foi registrado em diversos trabalhos de importantes docuemntaristas brasieliros. Um destes é o documentário Jards Macalé: Um Morcego na Porta Principal (2008), dirigido por Marco Abujamra e João Pimentel. Ele mergulha no universo complexo de um artista que operou à margem do mainstream, mas influenciou profundamente a música brasileira. O título remete diretamente à canção “Cuidado!“, apresentada no Festival Internacional da Canção de 1969. “Cuidado!” se tornou então, um manifesto metafórico contra a repressão da ditadura militar.
"Eu fiz um quarto bem vermelho aqui em Gotham City
Sob os muros altos da tradição de Gotham City
No cinto de utilidades as verdades
Deus ajuda a quem cedo madruga em Gotham City”
“Cuidado!
Há um morcego na porta principal
Cuidado!
Há um abismo na porta principal”
Vencedor de Melhor Documentário no Festival do Rio, o filme evita homenagens convencionais e adota uma narrativa não linear. A obra destaca a resistência do próprio Macalé ao processo de filmagem, revelando sua irritação com a possibilidade de ter sua vida e obra “desconstruídas”. Esse tom metalinguístico reflete a personalidade de um músico que sempre rejeitou rótulos, como o de “maldito”. Jards nunca aceitou o modo em que a mídia tetava enquadrá-lo.
Através de imagens de arquivo e depoimentos de parceiros como Nelson Pereira dos Santos, o filme registra a rotina de Macalé e momentos icônicos de sua trajetória. A obra foca na atitude e resistência do artista, abordando seu exílio em Londres e atos de desafio à censura. Um deles é a performance no “Banquete dos Mendigos”. O documentário se consolida, certamente, como um estudo sobre sua postura política e estética diante do mercado e do Estado.
Jards
Outro registro cinematográfico importante sobre a sua obra é o documentário Jards (2012), dirigido por Eryk Rocha. O filme é um ensaio poético e sensorial que mergulha no universo criativo de Jards Macalé durante as gravações de seu álbum homônimo de 2011.
Distanciando-se de biografias convencionais ou registros de shows, o filme foca nos processos de experimentação, improviso e silêncio do músico carioca, capturando a tensão entre o êxtase da criação no estúdio e a solidão das ruas. A obra utiliza uma linguagem fragmentada e uma estética visual inquieta para retratar a alma de um dos nomes mais irreverentes da música popular brasileira, contando com a presença de artistas como Adriana Calcanhotto e Luiz Melodia em momentos de íntima colaboração musical.
O Macalé é um garoto rebelde e indisciplinado, mas com disciplina…
Luiz Melodia
A proximidade com o cinema vai além dos documentários sobre a sua obra. Macalé participou, como ator e compositor, da trilha sonora dos filmes Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos. Também compôs para as trilhas sonoras de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, Antônio das Mortes, de Glauber Rocha, A Rainha Diaba, de Antonio Carlos Fontoura, e Se Segura, Malandro!, de Hugo Carvana.
A Poesia e as Parcerias Eternas
A faceta provocadora e a musicalidade ímpar de Macalé foram potencializadas por parcerias líricas memoráveis, em especial com o poeta Waly Salomão. Juntos, criaram hinos de resistência e beleza, como “Vapor Barato” (imortalizada na voz de Gal Costa) e “Mal Secreto” (sucesso com Maria Bethânia). Essas composições transcendem o tempo e as gerações, unindo a crueza poética de Salomão à sensibilidade musical e à voz “ruminada” e inconfundível de Macalé.
Além de Salomão, Macalé manteve diálogos criativos com Torquato Neto e José Carlos Capinan. Como eles construindo uma obra permeada por “estranhamento, poesia e defesa radical da liberdade estética”. Sua capacidade de dialogar com diferentes vertentes e artistas — desde Luiz Melodia até Moreira da Silva — demonstra a amplitude de seu espectro musical. Ao mesmo tempo, era prova da sua recusa em se prender a um único estilo.
O Legado de uma “Besta Fera”
Mesmo em idade avançada, Macalé manteve um vigor artístico inabalável. Em 2019, lançou o aclamado álbum “Besta Fera“, que foi saudado pela crítica como um dos grandes trabalhos de sua discografia, provando que sua chama criativa nunca se apagou.
Sua morte, decorrente de problemas pulmonares e uma parada cardíaca em novembro de 2025, encerrou a trajetória física do artista, mas não sua influência.
Jards Macalé deixou uma discografia enxuta, mas cada álbum é um tratado de música e atitude. Sua obra permanece como um testemunho de que a arte verdadeira não se curva a modismos, mas sim desafia, provoca e, no processo, se torna eterna.
não quero ficar dando adeus
as coisas passando, EU QUERO
É PASSAR COM ELAS, eu quero
é não deixar nada mais
do que as cinzas de um cigarro
e a marca de um abraço
no seu corpo.
“Movimento dos Barcos” (Jards Macalé e José Carlos Capinan), do álbum Jards Macalé (1972)
Este artigo foi elaborado pela equipe editorial da Revista Pluriverso (*) e uso do Gemini na busca de fontes e revisão de copyright.

