Por André Sobrinho e Luciane Ferrareto*
Apontaram armas para nós enquanto tentávamos entrar no carro (…) estávamos numa ação entregando 200 cestas básicas para as famílias da região Pantanal. Estamos cansados. A gente não tem direito de entregar comida, a gente não tem direito a cuidar dos nossos. A gente não tem direito a nada …
Integrante da Frente CDD – Cidade de Deus.
Os impactos da pandemia de covid19 seguem agravando as desigualdades socioeconômicas e espaciais nas grandes cidades brasileiras, vistas a olho nu e esmiuçadas há décadas em diagnósticos e pesquisas no campo das ciências humanas, sociais e da saúde. Ao contexto desigual de acesso às condições sanitárias para uma melhor saúde urbana em territórios como as favelas e as periferias, adiciona-se a realidade de uma geração de homens e mulheres jovens ali residentes, em sua grande maioria negros, que vivem uma condição juvenil marcada por dificuldades na inserção educacional e na vida produtiva.
As causas estruturais dessa condição se assentam na precarização e informalidade do mundo do trabalho, colocando também em xeque as aspirações de mobilidade social prometidas pelas instituições educativas. Disto resultam trajetórias escolares erráticas, reforçadas pelas exigências de sobrevivência, bem como experiências laborais instáveis e intermitentes, fruto de sucessivas crises econômicas e flexibilização de direitos trabalhistas, que afetam de maneira mais contundente a faixa de idade entre 15 e 29 anos.
Os desafios a essa geração de jovens não param por aí. No dia 20 de maio de 2020 integrantes do grupo Frente CDD estavam distribuindo cestas básicas na favela de Cidade de Deus, Zona Oeste do município do Rio de Janeiro, quando foram interpelados por uma operação policial que vitimou de morte um jovem de 18 anos. Dois dias antes, o adolescente João Pedro, 14 anos, havia sido alvejado em uma abordagem da polícia com 70 tiros em sua casa no Complexo do Salgueiro no município fluminense de São Gonçalo.
A despeito da decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, em junho de 2020, restringindo operações policiais enquanto viger o estado de calamidade pública em função da pandemia, relatos de situações semelhantes de ação estatal nas favelas vem ocorrendo por parte da polícia durante esse período, cuja expressão mais midiática foi a chacina do Jacarezinho em 06 de maio deste ano que matou 28 pessoas, incluindo um policial. As ocorrências abundam demonstrando que ao invés de serem públicos prioritários de medidas econômicas justas e de políticas sociais para juventude, estes jovens são marcados por serem alvos de políticas de segurança ineficientes e de estratégias homicidas que os colocam constantemente na mira do braço armado do Estado.
Sob o parâmetro epidemiológico, desde o início de 2021, o fenômeno do rejuvenescimento da pandemia tem sido identificado pelo aumento do número de contaminação, internação e óbitos na faixa de idade entre 20 a 49 anos. Na esteira de certa percepção do senso comum que tributa a juventude impulsos incontroláveis por lazer e diversão, parte da opinião pública produz interpretações que recaem na responsabilização individual de jovens quanto à infecção pelo coronavírus, realçando as consequências daí inerentes como o agravamento da sua condição de saúde e os riscos de contaminação aos seus círculos de convivência. Obviamente, todos os apelos à consciência sanitária para o momento atual são fundamentais e campanhas que procurem incidir em um comportamento individual mais responsável devem ser estimuladas e ampliadas. Ocorre que os fatores estruturais da exposição da juventude ao coronavirus devem ser igualmente colocados em evidência.
Segundo dados do IBGE (2021), 31% da população jovem de 18 a 24 anos no Brasil está desempregada; esse número aumenta para 46,3% na faixa de 14 a 17 anos. Tais percentuais estão muito acima da média geral que é de 14%. O IPEA (2021) informa que há 4,1 milhões de jovens em busca de emprego no país. Ou seja, expressiva parcela da juventude que não está trabalhando, está buscando trabalho. Não é difícil concluir que boa parte destes jovens, para garantir alguma renda, assumem trabalhos que não oferecem nenhuma proteção – nem social ou trabalhista, nem de exposição à saúde na pandemia.
O DIEESE (2020), por exemplo, sinaliza que do contingente de quase 1 milhão de motoristas e entregadores de aplicativos, 43% está abaixo dos 30 anos, sendo 95% homens. Estudo de Ludmila Abílio (2020) desvela as distinções desiguais nessa mesma função: quanto mais precária a condição de trabalho (por exemplo, entre os motoboys e os bikeboys), mais negro e periférico é o jovem trabalhador. Outras ocupações poderiam facilmente explicitar a enorme exposição da juventude no contexto da pandemia, tais como cuidadoras cujas mulheres são as principais trabalhadoras; empregos domésticos, ambulantes, e todos os tipos de “viração” que exigem deslocamento e circulação nas ruas. Não há, portanto, respostas fáceis à situação social, econômica e epidemiológica da juventude brasileira; inclusive mais confundem do que orientam, determinadas visões caricaturais sobre os jovens que alcançam o debate público.
No momento atual, contudo, nos parecem relevantes as convergências de diversos atores para mitigar os efeitos nefastos da pandemia nas populações de favelas e periferias. No entanto, frente aos fatores estruturais das desigualdades persistentes, cabe mencionar a aguerrida organização da própria juventude em mobilizações coletivas que explicitam sua condição. Frisar o caráter de coletividade é matizar as soluções de cunho meritocrático, como supõe por exemplo a ideia de “resiliência”, que coloca acento em histórias individualizadas de superação de jovens em cenários adversos. Atualmente, a noção de “potência” também vem sendo propalada para se dirigir à juventude e certamente já assume múltiplos significados, dependendo de quem a manuseia.
O fundamental na leitura aqui proposta é de que, se por um lado, histórias pessoais de superação devem ser celebradas, ou na dimensão social, a convocação de um “nós por nós” assegura o protagonismo das populações faveladas na busca de soluções pelo caminho da solidariedade, por outro, não se dispensa no plano político a contínua exigência de políticas efetivas por parte dos poderes constituídos na responsabilização daquilo que lhe é devido. E isso é uma tarefa não apenas dos jovens: para uma presença estatal nas favelas e periferias que afirma a vida e não a morte física e simbólica da juventude, é preciso mais democracia, mais acesso à justiça, mais reconhecimento e garantia de direitos, mais igualdade social e econômica e muito comprometimento de outras gerações que ocupam os espaços de poder e decisão. Diante desse cenário de desigualdade agravado na pandemia, uma resposta institucional mais contundente é urgente e necessária em favor da juventude.
* André e Luciane são sociólogos e coordenam a Agenda Jovem Fiocruz.
* Artigo para a Revista Radar Covid-Favelas