O centro Cultural Lá da Favelinha, no Aglomerado da Serra, reforça, pela arte, pela moda, pela horta, pelo teatro, pela dança, pela festa a ideia de que a periferia é mais centro do que o centro. Na articulação de possibilidades potentes de existência e de criação na favela, os participantes descobrem também formas de enfrentar estigmas e sair dos armários, das gavetas, das caixinhas.
Por Kdu dos Anjos, fotografias de Bruna Brandão
Toda vez que meus pais tinham um corre para fazer no centro, eles diziam que iam “à cidade”. E eu sempre perguntava: “Gente, mas não é a mesma cidade? Para qual cidade vocês estão indo?”. Estamos na periferia, mas hoje tenho outra perspectiva. Isto aqui é uma cidade. O Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, é uma cidade. Não preciso mais sair da favela para me alimentar bem, para me vestir bem, para dar um rolé. Aqui tem tudo e tem uma população que é maior do que a de várias cidades de Minas Gerais. Falam de 50 mil, mas sabemos que são cerca de 150 mil habitantes. O último censo foi em 2001, época do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que abriu avenidas e tirou muitas pessoas aqui do morro. Se são 150 mil habitantes, então é uma cidade. Não tem como estarmos à margem, nós somos o centro.
Minha mãe é confeiteira e meu pai foi taxista. Vendiam cachorro-quente à noite e juntaram uma grana para comprar um terreno e construir o barraco. Hoje fico muito empolgado de fazer a minha casa aqui dentro, uma casa não convencional se comparada aos demais barracos. Minha casa fica no final de um beco, em uma rua que não tem asfalto. Eu não tenho endereço. Não posso pedir um Uber na porta de uma casa sem endereço, mas, ao mesmo tempo, estou no miolo. A vista daqui é surreal. Não tenho água, não tenho luz, é tudo gato. Meu chuveiro não funciona direito porque a rede não aguenta. Preferiria pagar para ter água quente, mas não tenho essa opção. Estou num lugar apelidado de Pomar do Cafezal, um projeto lindo desenvolvido há seis anos, que plantou árvores frutíferas numa área de risco que não podia ser ocupada. Um morador decide plantar árvores e muda a realidade local. Na casa ao lado da minha, que é da minha irmã, ela estica a mão e pega um abacate! Volta e meia tem um tucano no deck do meu barraco! Estamos dentro da favela, mas nem parece que é favela.
Antes, se ouvisse que “a periferia é o centro”, eu diria: “Tá maluca? Só se for centro de macumba, que aqui é cheio!”. Hoje, sinto que aqui é bem mais centro do que o “centro”. Sinto um centro de segurança. Na favela, o que atrapalha minha segurança é a polícia. Se a polícia não vem, está tudo OK. Sinto um centro afetivo muito forte também. A galera fala: “Quer sair do armário, entra pro Lá da Favelinha!”. Passou no portão da Favelinha, saiu do armário. Antes eu via isso como uma zoeira homofóbica, mas hoje vejo algo muito real: somos um centro de afeto.
E somos também um centro de educação. Temos agora um projeto de educação formal, porque a educação informal, paulofreiriana, sempre tivemos o tempo todo. A Aninha, uma das estrelas do Lá da Favelinha, era ruinzinha na escola. Não porque fosse “burra”, mas porque não tinha afeto. Depois que ela passou a dançar, a fazer as oficinas e a ganhar batalhas de passinho, ela já era a melhor aluna do colégio! Deixou de ser um problema para a escola e passou a ser uma solução. Tornou-se a menina que aprende a fórmula da matemática e as regrinhas do português e ensina para os outros, porque tem a metodologia de passar para frente. Quanto antes todo mundo terminar, mais tempo livre terão para brincar! E ela não precisou ir à cidade buscar conhecimento.
Tenho muito orgulho do Fabão também. Uma vez, ele foi convidado para fazer um filme. O papel dele era de prisioneiro acautelado pela Febem. Ficaria de cara fechada boa parte do tempo e, em determinado momento, cantaria um rap. “Não vou conseguir fazer, estou inseguro!”. “Você não sabe ficar de cara fechada? Não sabe imitar bandido? E não sabe cantar rap? Pelo amor de Deus!” Resultado: ganhou o prêmio de melhor ator de um festival de cinema independente internacional. Quando foi palestrar, veio com a mesma história: “Que responsa! Evento, cachê…”. E falei: “Mano, você vai fazer o seguinte: vai contar sua história, falar que em 2015 chegou o Lá da Favelinha, as pessoas foram se aproximando… Contar alguma história que te cruza naquele momento, e depois fechar falando o que essa plataforma possibilitou para você e seus amigos. E acabou, são 20 minutos com início, meio e fim!”. Era mais fácil do que ele imaginava. O Fabão não era ator nem palestrante, mas, simplesmente por se sentir parte daquele centro, com uma ferramenta muito básica que é a oralidade, fez tudo isso, algo que parecia muito distante dele.
OCentro Cultural Lá da Favelinha surgiu de um evento. Eu já dava oficinas de rap e, quando íamos nos apresentar fora da comunidade, tínhamos o nome de MCs lá da favelinha. As oficinas aconteciam duas vezes por semana no Centro Comunitário Cristão, mas começaram a reclamar quando as meninas iam com roupas mais curtinhas ou quando a galera chegava com cheiro de maconha ou atrasada. Era um público que incluía gente que estava no tráfico e ia quando queria… Foi assim que aluguei o espaço que é o Lá da Favelinha hoje – que, até então, era a lanchonete da minha família.
Meus pais estavam cansados da rotina de trabalhar de dia e ainda ter que ficar na lanchonete à noite. Transformei o espaço em oficina de rap e biblioteca. “Biblioteca dentro da favela? Favelado nem lê!”, me diziam. Para ler tem que ter livros à disposição, não é? E eram mais de dez empréstimos por dia! Uma vez, chegou o My Brother, um cara caricato daqui, e pegou dois livros. “Não, My Brother, é um livro por vez! Você vai ler dois livros de uma vez?” E ele me respondeu: “Eu tenho dois olhos pra quê?”.
No primeiro evento que fizemos vieram cerca de mil pessoas da cidade. Veio o povo do Duelo de MCs. Veio o povo dos saraus que eu já fazia antes, também. Com os saraus Vira-Lata, a cada quinze dias estávamos no espaço público para recitar e ouvir poesia. Tinha o povo do Giramundo, com quem havia trabalhado compondo trilhas de espetáculos de rua, chegando com bonecos gigantes e ocupando as praças, causando na cidade. E embora eu já tivesse essa perspectiva da ocupação urbana, quando voltava para a comunidade pensava no que poderia fazer aqui, trazer para cá… Comecei, então, a fazer eventos na favela e a atrair, inicialmente, a juventude. A comunidade cristã odiava. A artista Criola fez um grafite de umas cabeças pretas cortadas com raízes e falavam: “É macumba isso aí, sai de perto desse povo!”. Fizemos outro evento com pauta feminista. Desceram mulheres que começaram a se beijar na rua e as pessoas reclamavam: “Deus do céu, esse povo da Favelinha é louco!”.
Em determinado junho, essa tropa mais animada decidiu fazer uma quadrilha. Era 2015, o primeiro ano do Lá da Favelinha. Eu não entendia de quadrilha, sabia apenas aquela coisa de escola, mas achei que dava para fazer. Criamos o Formação de Quadrilha. Ensaiávamos na rua, e tinha um cano de água quebrado que sujava os sapatos das meninas. Eu, inocentemente, fui à prefeitura pedir um alvará. Conseguimos vários dos documentos necessários, mas, quando chegamos à polícia, ouvimos a resposta: “Não vamos liberar esse evento”. O cara me conhecia, gostava de rap, mas falou que não podia liberar: “Porque isso vai virar baile funk”. Entrou no evento do Facebook e mostrou que havia mais de cinco mil pessoas de outros lugares confirmadas, porque um DJ de funk tinha postado que ia tocar.
Voltei para a comunidade: “Galera, deu ruim, não vamos fazer o evento porque não temos alvará”. Mas afinal, o que é um alvará? É um pedaço de papel que me autoriza a fazer algo ou não, sendo que estamos num lugar que já é autorizado por nós mesmos o tempo todo! Falei para todo mundo que não ia rolar mas fiquei com aquela pulga atrás da orelha. Foi quando o pessoal do crime me chamou: “Por que não estão deixando?” Porque, para deixar, a estrutura custaria pelo menos 20 mil reais. Queriam um palco, saída de emergência, brigadista, bombeiro, segurança. Queriam até detector de metais na entrada do evento, dentro da favela! “A gente dá essa grana”. Pelo amor de Deus, jamais. “Vocês são doidos? Eu não quero”. No outro dia me chamaram de novo. “Muito doida sua atitude, a gente quer apoiar de alguma forma. Tenho uns vestidos lá em casa. Eu ia patrocinar uma quadrilha, mas deu errado, então pode ficar com os vestidos”. Beleza, só força, aceitei! Porque era o CPF e não o CNPJ da biqueira. Ia ter quadrilha!
Ligamos para a Copasa, a concessionária de água, fingindo ser da Prefeitura, pedindo para arrumar o cano que vazava eternamente na rua. Qual era a desculpa para não arrumar? No dia seguinte, apareceram e arrumaram o cano. E rolou a festa. Trouxemos uma atração nacional, o rapper Rapadura, que cantou com uma levada repentista e foi a coisa mais linda do mundo. No ano seguinte, a Melissa começou a patrocinar o Formação de Quadrilha. Nossa força coletiva fez a festa. Na ocasião, a gente só queria o auê. Depois, mais à frente, começaríamos a pensar em militância, em tradição, em contar nossas histórias.
No segundo ano, falamos: “Vamos fazer as roupas?” Não tinha nada a ver ficar usando os vestidinhos tradicionais de chita, que ainda por cima eram dos caras do crime. Nascia ali o embrião do Remexe, nosso projeto de moda. Nossa designer de moda, Carla, mudou de vida completamente: saiu de um relacionamento abusivo, porque conseguiu ter independência financeira, deixou de ser diarista. Vai para São Paulo várias vezes e já foi à Europa. Tudo isso porque não desistimos de fazer a festa sem o alvará.
Hoje em dia fazemos a festa com alvará. O Baile da Serra, baile funk da Kika, é um baile com alvará também. Eu comecei a trazer talentos específicos que a gente via mais na cidade e menos aqui na comunidade: advogados, gente da Secretaria de Cultura e da Prefeitura, vereadores, políticos em geral. Usando sempre as mídias e as redes sociais também.
O arquiteto Fernando Maculan veio por causa de um projeto do SEBRAE. Na primeira reunião, ele quis saber sobre o nosso espaço e contei que era da minha família. “Rola de reformar, de fazer um projeto de arquitetura?”. Aí fechei a cara e falei: “Mano, vou te dar um papo reto. Se for fazer, você pega e faz. Não cria expectativa, não toma o tempo da gente”. Na segunda reunião discutiam sobre burocracia, dinheiro, que a gente não tinha CNPJ, possibilidades de doação… E falei: “Quanto é essa estrutura que vocês estão pensando?”. Inicialmente pensaram só no teto; depois virou tudo, mas na ocasião era algo em torno de 20 mil reais. “Gente, poupem meu tempo! Se ninguém puder dar, vou vender paçoca no sinal. Levo um tanto de dançarinos de cada lado, alguém com uma placa escrito o que a gente precisa e faço essa grana em dois finais de semana!”. Ele riu e disse: “Eu quero é você!”. Surgiu assim nossa parceria.
Com a artista Ana Pi foi a mesma coisa. Ela estava ligada nas nossas redes sociais, chegou da França convidada pelo Inhotim e propôs para eles uma contrapartida social. Eles vieram, formais e educados, eu mostrando onde acontecia o baile funk e percebendo que a Ana Pi queria o baile funk. Ela propôs fazer uma oficina de dança. Achamos os dançarinos. Foi na laje da minha mãe. O lanche foi pão com salame e Coca. E nesse dia a gente bateu a meta do primeiro financiamento coletivo, que mantinha o espaço aberto por um ano. Estouramos foguete, fizemos a festa. A Tetê Moreira, rainha do vogue de Belo Horizonte, é fotógrafa e estava com uma câmera sinistra no dia e fez a foto. Um dançarino vem lá da quebrada do seu vizinho, entra Ana Pi, artista internacional, alguém faz uma foto boa: a partir daí, surgem todas as possibilidades! Ana Pi me chamou no canto e falou “Kdu, esse lugar respira dança, é sério. A Favelinha dança”. Ela profetizou o nosso caminho. Existe a Favelinha antes e depois de Ana Pi. Alguns anos mais tarde, estava todo mundo lá em Paris, no primeiro Museu de Arte Contemporânea da França.
Lá da Favelinha vem falar que a gente tem moda, que a gente tem horta, que a gente tem uma equipe de administração e de logística incrível, que a gente tem teatro, dança, passinho, tem dançarino internacional, tem costureira internacional. Vem começar a dar novas caras para essas narrativas, para as próximas pessoas começarem a contar suas histórias. Hoje eu só não excluí as redes sociais da minha vida porque ganho jobs por lá, mas estou odiando tudo que não está aqui dentro. É muito retrocesso o que chega de fora. Bolsonaro foi eleito pela periferia! A maioria é crente. Tem as matriarcas e os patriarcas na igreja. Isso sem falar de retrocesso financeiro, falta de oportunidades, sucateamento… Ao mesmo tempo que tem muito retrocesso, temos um povo muito esperto, fazendo gambiarra, aprendendo a se virar, chegando até aqui vivo.
Uma vez, fui dar uma palestra no Vale do Jequitinhonha: “Quando eu digo favela de Belo Horizonte, o que vocês imaginam?”. Eles: “Funk, polícia, tráfico, arma, tiroteio, sequestro…”. E eu: “Beleza. Quando falam para mim Vale do Jequitinhonha, o que acham que eu imagino?” E eles: “Seca, boi morrendo no pasto…”. “Pois é, até agora não vi nada disso! Só vi artesanato foda, pessoas incríveis com brilho nos olhos quando contam suas histórias. Só vi gente potencial, gente incrível, só vi potência aqui”. Quando falam de favela, a gente só ouve falar dessa narrativa.
Eu só gasto minha grana aqui dentro, ou então com outros favelados. Só não compro aqui o que não acho aqui mesmo. De resto, gastamos a grana aqui o tempo todo, pagando as pessoas daqui. E a tropa aprende fácil! Não tem muito tempo a perder. Falar dessas várias caras da Favelinha vem de um lugar meu, pessoal, de assumir que sempre quis ter reconhecimento como artista, mas percebi que sou mais “juntador” do que propriamente talentoso.
Eu não era o que rimava mais nem o que cantava melhor, mas era quem mais fazia as coisas acontecerem. Fazia o evento, a festa, a união. Fazia o beabá para criar o evento e espalhar o evento. Sempre fui o metódico, e aqui no morro é a mesma coisa. O que a gente tinha para fazer o Favelinha Fashion Week? Três bonés e três blusas (“Lá da Favelinha Casinha”, “Lá da Favelinha Sim” e “Disputa Nervosa”) e o acervo de um bazar que minha mãe fazia de vez em quando. Tínhamos o beco chamado Passarela, no coração do morro, onde todo mundo passa. E tínhamos os doidos e as doidas que topavam vestir as roupas e se jogar no Beco Passarela.
Não sou da moda. O que é a moda? Eu acho que é podridão pura! Mas eu estava querendo fazer aquilo acontecer. Não sou dançarino, mas sou convidado para conferências e trabalhos de dança. O que eu fiz? Juntei os dançarinos que precisavam de uma plataforma para dançar e de um lugar para mostrar e expandir seu talento. É muito legal o evento que chamamos de Disputa Nervosa, mas e as festas de 15 anos? E as festas de formatura? E os grandes eventos com as grandes atrações? Quem vai cobrir esses lugares? Foi por isso que eu disse: “Vamos fazer um grupo de dança aqui!”.
O Lá da Favelinha tem essa cara de adaptação. E isso vem muito de eu assumir que não sou nada, que não sou ninguém, que não sou uma pessoa talentosa. Se eu começar a tocar violão no barzinho, todo muito vai começar a conversar! Mas se a gente está vestido bonitinho e junta eu no violão, um cara que manja de luz, uma galera que manja de dança, e ainda uma experiência gastronômica… para mim, isso é matemática. Não tem como dar errado.
Preciso de agito, de novidade. Não quero que seja só eu, quero envolver mais gente. O Fabão trabalhou dois anos numa cafeteria na Savassi, bairro nobre de Belo Horizonte, mas viu que entrou numa rotina que não queria. Hoje ele vai escrever textos para mim. O cachê vem para mim, por causa da empresa, mas depois vai para o Fabão. Ele e o Guilherme Cardoso, outro menino incrível, muito nerd, estão cuidando da grana, fazendo investimentos. Vamos começar também a fazer o podcast Podkfé. Queremos plantar café em todos os lugares possíveis do Cafezal. Começamos a trabalhar na horta da Kika porque aprovamos um projeto para lá, com grana para pagar a galera para cuidar… Eles não dizem que são podcasters, que são investidores, ou que são agricultores. Eles conversam sobre plantas e a experiência que estão tendo. Não esperamos um retorno financeiro imediato, mas são projetos que, daqui a pouco, vão dar retorno. Catamos qualquer edital que estiver rolando, a não ser que seja um edital muito específico, em que seja preciso, por exemplo, ser lavadeira do Vale do Jequitinhonha. Nesse caso não podemos nos inscrever. Ou talvez até possamos! Assumimos isto: não somos nada oficialmente e, ao mesmo tempo, oficializamos tudo o que acontece.
Aprendi isto também com o Celso Athayde, o criador da CUFA (Central Única de Favelas). Ele conta que, no momento em que a CUFA começou a crescer, ele começou a nomear pessoas. “A partir de agora você é diretora de marketing internacional”. “Agora você é a presidente nacional das Mulheres contra a fome”. Nomeava todo mundo, até quem acabava de conhecer no bairro: “Vem pra CUFA, você é o nosso gestor da capoeira”. Nós começamos a fazer isso aqui também. O que é o Remexe? É uma etiqueta mas, mais do que uma etiqueta, é uma cooperativa de moda sustentável que faz roupa de resíduos têxteis e de outras roupas. O que é a Disputa Nervosa? É uma batalha de passinhos de funk que discute, empodera, reúne e celebra o funk. O que é o Favelinha Dance? O que é o Podkfé? O que é a horta? O que é tudo isso? O que é arte?
Um belo dia, o Djonga estava aqui e contei que eu tinha feito um tijolo. O Djonga disse: “Mano, e daí esse tijolo? É só um tijolo e você tá falando que isso é arte? Eu vou mijar nisso aqui!”. E eu falei: “Pelo amor de Deus, mija que vai valer muito mais!”. Do fundo do meu coração, o tijolo pode ser nada, por ser ridículo, mas se fazemos um texto, se jogamos uma luz, tudo fica tão rico, tão genial!
A vinda de artistas de fora para a favela cria um bug nosso sistema de uma forma positiva. Ajuda a entender o papel de defesa que é mostrar nosso cotidiano. Hoje tenho orgulho de dizer que virei um “playboyzinho”, uma “patricinha”! Porque eu tenho ódio da miséria. A miséria não é para ser romantizada. A favela não merece passar fome. Não merecemos ser abusados o tempo todo, no transporte, na saúde. Merecemos tudo do bom e do melhor. Eu quero consumir do bom e do melhor. Sempre tive ódio da miséria e enxerguei na arte um lugar interessante também para fazer grana. Minha necessidade real de fazer arte é a grana. Já pensou se não precisasse dessa vaidade toda da arte e tudo mais, como seria mais interessante? Só que é esse mercado, é essa a saída dos meninos…
O Guilherme Cardoso trabalhava numa drogaria seis ou oito horas por dia, sem escalas definidas. A drogaria não pagava alimentação; preferia pagar multa, sai mais barato. Isso é odiável, mas ela paga um cachê de cinco salários mínimos por uma dancinha publicitária ridícula. A CLT é um sonho para muitos favelados, mas, ao mesmo tempo, prende tanto, dificulta tanto a nossa vida, que é quase uma escravidão.
Para mostrar que podemos escrever nossa história, principalmente financeira, todo mundo da Favelinha que recebe alguma coisa é MEI (Microempreendedor Individual), fazendo a coisa mais inusitada possível – inusitada para a nossa realidade. Porque o comum é ser pedreiro, faxineira, porteiro, motorista… Começa por aí: temos os colunistas do jornal, temos as modelos… Camile tem 18 anos e está fazendo grana com moda. Profissão: ser bonita! Dando entrevista para a Globo, falando dos projetos com propriedade. É a arte de sobreviver! No início, assim como o Fabão, Camile estava indecisa. “Menina, você posta foto no Instagram o dia inteiro, não sabe fazer uma carinha bonita? Vai nessa!” Temos que lidar com muita contradição, o tempo todo, mas é daí que vem também muita inspiração: da pluralidade, da possibilidade, da potência.
Descobri que a mãe da minha mãe faz rima, e ela é analfabeta. Minha avó não sabe muita coisa sobre isso, o que criou, o que ouviu, o que recriou a partir do que ouviu. A maioria das rimas ela acha que “desdecorou” para fazer as próprias. “Desafio São João relampeja a bomba d’água / quem tiver um terno só vai na bica, bate e enxágua / Vai na bica, bate e enxágua quem tiver um terno só / tem o meu xale francês, tem o seu de Milenó / Tem o seu de Milenó, tem o seu xale francês,/ senhora dona dos ovos, ou me vende ou me dá três”. Ela nos embala nessa rima. Que matemática é essa! Minha família, por parte de pai, comandava os foliões que saíam na virada do ano, de casa em casa, nas madrugadas, tocando e rezando e, quando chegava de manhã, eles chapavam e dormiam… Uma cultura linda que está acabando. Um desses meus tios fazia rima de improviso, tipo batalha de rap mesmo, só que com um ritmo mais lento. Todos nós trazemos isso em nós, é muito DNA.
Quando a gente se apresenta num baile funk na favela, mesmo, não é tão legal como quando a gente se apresenta lá embaixo, na cidade. Aqui é normal, não é extraordinário. Identificamos nosso público como pessoas ligadas a causas – sociais, ambientais, de gênero, a todas as causas possíveis. Essa galera pira no Remexe. As pessoas daqui não costumam usar nossas roupas, exceto algumas pessoas de religiões africanas ou LGBTQIA+.
Os poucos que continuam sendo héteros, quando se envolvem com a Favelinha, saem do armário. E são vários armários. O Guilherme é um amor, mas quando está entre os homens, baixa a quinta série. Outro dia, o Guilherme deu um abração, do nada, na Negona, um dançarino preto, gordinho, mega-afeminado, que arrasa. Estávamos trabalhando e vi aquele abraço. Isso é sair do armário! Não estou falando que amanhã o Gui vai pegar meninos, isso é ele quem sabe, mas esse gesto é sair do armário!
Isso é arte pura, para mim. Burlar o sistema. Sou esse artista burlador de sistemas. Aprendi a burlar o sistema, a chegar e ver as oportunidades. Na Favelinha as pessoas entenderam isso, as possibilidades de sair dos armários, das gavetas, das caixinhas. Eu vou gravar, daqui a alguns dias, o KFZ. As músicas deles vão contra todas as pautas de esquerda, mas vou gravar um videoclipe incrível deles, porque prefiro mil vezes eles fazendo isso e monetizando do que sucumbindo à possibilidade de ir para o crime, ou, pior ainda, para a CLT. O crime e a CLT são igualmente ruins. Os dois são insalubres, os dois são escravagistas. Prefiro que façam arte, e que com o tempo decidam se vão começar a falar de poesia ou continuar falando de putaria, mesmo.
Essa matéria também foi publicada na revista Piseagrama.
Kdu dos Anjos é artista, rapper e agitador cultural, participou, entre outros, do Duelo de MCs e do projeto Giramundo. Foi criador do Sarau Vira Lata e idealizador do centro cultural Lá da Favelinha, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte.
Bruna Brandão é graduada em Comunicação Social pela UFMG e em Fotografia na Cambridge School of Art – Inglaterra. É fotógrafa da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e integrante do fotocoletivo Flanares.
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