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Jardim Gramacho: do Óscar ao esquecimento

Em 2010, o documentário “Lixo Extraordinário” revelou como era a vida dos catadores do aterro controlado de Jardim Gramacho. Atualmente, onze anos após seu fechamento, os catadores lutam para não serem esquecidos pelo estado.

Em 2010, o documentário “Lixo Extraordinário” sensibilizou o Brasil sobre a situação do aterro controlado de Jardim Gramacho. Em 2012, no entanto, o aterro encerrou suas atividades. As 9 toneladas de resíduos que eram depositadas diariamente não seriam mais recolhidas pelos catadores de materiais recicláveis que habitavam Jardim Gramacho. Estes profissionais que se dedicam à reciclagem, de acordo com o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), representam mais de 800 brasileiros e são responsáveis por 90% de todo material reciclado no Brasil.

No Brasil, apenas 4% dos resíduos são reciclados, número muito inferior ao de países como Alemanha e Áustria, onde o índice de reciclagem chega a 50%. Porém, ainda que a taxa de reciclagem no Brasil seja pouco expressiva, o país é líder em reciclagem de produtos com alto valor de revenda. No caso das latas de alumínio, por exemplo, esta taxa chega a 98,7%, segundo a ABRALATAS. Devido à monetização destes materiais, a reciclagem é a principal fonte de renda de diversos cidadãos brasileiros, os catadores. Nas palavras de Sebastião dos Santos, protagonista do documentário Lixo Extraordinário, no Brasil, “a reciclagem não é fruto da consciência ambiental, mas da pobreza”.

O Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (IPEA), em 2016, a partir de dados adquiridos pelo censo de 2010, analisou o perfil dos catadores brasileiros. De acordo com o estudo, os catadores se concentram nos grandes centros urbanos do país. Além disso, a maioria deles são negros e possuem renda mensal de 561,93 (a média da população ocupada era 1.271,88 e representava cerca de 1,1 salários-mínimos). Há entre os catadores uma taxa de analfabetismo maior do que a média nacional. Entre os catadores com mais de 60 anos, por exemplo, cerca de 40% não são alfabetizados. Por fim, o instituto revelou que 54% destes catadores chefiam os domicílios que residem.

Desses catadores, milhares moravam em Jardim Gramacho e dependiam do aterro controlado para sustentar-se financeiramente. O bairro de Jardim Gramacho, localizado na cidade de Duque de Caxias, enfrenta diversos problemas sociais. De acordo com o Ciclo Vivo, em 2014, a ONG TETO revelou que apenas 5% das casas do bairro estão conectadas a uma rede de esgoto. Além disso, 74,8% das moradias não possuem água encanada.

O aterro sanitário de Jardim Gramacho operou durante 34 anos (de 1978 a 2012) e foi considerado o maior depósito sanitário da América Latina. No início de suas atividades, o aterro funcionava como um “lixão” e não havia um tratamento para que o material recebido passasse por um processo que garantisse um controle ambiental sobre a nocividade destas atividades.

Em 1996, devido à preocupação com a Baia de Guanabara, que encontra-se ao lado do aterro e pela preservação da saúde de toda a comunidade que residia próximo ao lugar, ocorreu a terceirização da gestão do aterro e ele passou a ser administrado pela empresa Queiroz Galvão que se comprometeu a transformar o lixão em um aterro sanitário. No entanto, pela ausência de uma gestão aeróbica e anaeróbica dos gases oriundos do descarte dos materiais, o lugar nunca foi considerado oficialmente um aterro sanitário, passando a ser considerado um aterro controlado.

Em 2012, o poder público tomou a decisão de fechar o aterro controlado e esta decisão afetou a vida das famílias de Jardim Gramacho. Em teoria, havia um planejamento para que os catadores não fossem impactados pelo fechamento e muitas coisas foram prometidas. O G1, em 2022, produziu uma série de reportagens sobre o andamento das promessas feitas e, conforme imagem abaixo, podemos ver que muitas promessas ainda precisam ser concretizadas.

Andamento das promessas feitas pelo poder público em 2012.

Imagem sobre as promessas que ainda precisam ser concretizadas publicada no G1 em 2022.
Fonte: G1 (2022)

É possível observar que o plano inicial de fazer um polo de reciclagem no local está longe de ser efetivamente concluído. Apesar de 1707 catadores terem recebido um auxílio que possibilita uma curta segurança financeira, apenas 38 ainda estão laborando no local. Destes, 8 são associados da ACAMJG, cujo diretor é Sebastião, que é uma das 3 cooperativas que estão no polo. O curso de capacitação que foi prometido representaria uma medida de apoio à reinserção destes profissionais no mercado de trabalho e sua não concretização demonstra a vulnerabilidade econômica que os coletores de recicláveis enfrentaram após o fechamento do local.

Atualmente, o principal destino dos resíduos urbanos gerados no estado do Rio de Janeiro é o Centro de Tratamento de Resíduos de Seropédica (CTR). Diferentemente do que ocorria em Jardim Gramacho, este Centro de Tratamento de Resíduos pode ser considerado um aterro sanitário, pois o lugar possui, entre outras coisas, uma estação de tratamento de chorume e usina de biogás.

Hoje, a área que o aterro controlado ocupava está reflorestada e o acesso não é permitido para visitantes. Do lado de dentro dos portões, os resíduos deram lugar as árvores, mas do lado de fora a realidade permanece a mesma. Na verdade, para muitos, a realidade piorou.

No trabalho “A Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho e a década perdida”, de minha autoria, Sebastião dos Santos, protagonista do documentário “Lixo Extraordinário” e outras duas associadas à ACAMJG aceitaram responder sobre as consequências do fechamento do aterro em suas vidas.

As três perguntas utilizadas no estudo foram:

  1. Você poderia contar um pouco sobre sua trajetória como catador de material recicláveis?
  2. Quais as consequências do fechamento do aterro controlado para você?
  3. O que ainda pode ser feito?

Sebastião dos Santos: catador, líder e defensor da sustentabilidade

O primeiro entrevistado foi Sebastião dos Santos. Também conhecido como Tião, ele é um homem negro de 43 anos, presidente da ACAMJG, protagonista do documentário Lixo Extraordinário e liderança política na luta pela valorização dos catadores.

Sebastião foi categórico e afirmou que esta atividade é fruto da pobreza e que as pessoas não se tornam catadores por serem ambientalistas. A primeira ida de Sebastião ao, até então lixão de Jardim Gramacho, ocorreu quando ele possuía onze anos. Aos treze, ele começou a trabalhar no local.

Ao logo de sua trajetória como catador, Tião iniciou uma forte militância em prol dos destes profissionais e participou de diversos eventos que debatiam o tema. Entre eles está o Fórum Mundial e o Encontro Latino-Americano de Catadores.

Sebastião possui em sua rotina de trabalho palestras, encontros com lideranças e eventos que possuam o papel de valorizar a vida dos catadores de materiais recicláveis. A indicação do documentário “Lixo extraordinário” ao Oscar, suas palestras sobre reciclagem e sustentabilidade e outras conquistas em sua trajetória profissional permitiram que Sebastião possuísse uma vida que considera “privilegiada” quando comparada com a de muitos dos seus colegas.

Ainda que Sebastião não dependa financeiramente da Associação ou da coleta de materiais, sua vida ainda é dedicada a reciclagem e ele considera como pior consequência do fechamento do aterro a sensação de impotência e de dever não cumprido. Este sentimento de desvalorização acompanha os catadores ao longo de suas vidas. A falta de providências tomadas pelo Estado para amparar estes trabalhadores após 2012 é um indício de como este grupo é invisibilizado pelo poder público.

Sobre o que ainda pode ser feito, o principal tema mencionado por Sebastião foi a educação. Para ele, é importante o conhecimento e a aplicação daquilo que foi proposto na Política Nacional de Resíduos Sólidos e é necessário que haja um plano de metas que forneça um horizonte sobre onde o país quer chegar e tenha mecanismos de controle e de multas para aqueles que não respeitem estas diretrizes.

Estas medidas, juntamente com ações que ensinem as crianças, sobretudo sobre como deixar de enxergar os resíduos como lixo, mas como um material que pode ser reutilizado e reciclado, são capazes de despertar a consciência ambiental, sendo esta a principal forma de consolidar na sociedade a capacidade de alcançar índices de reciclagem e sustentabilidade adequados.

Por fim, Tião comenta que a ineficiência do Estado no tratamento de resíduos coloca os catadores como um grupo que faz o papel do poder público.

Simone de Oliveira: a importância de se trabalhar em uma associação

A segunda entrevistada foi Maria Simone Amaro de Oliveira. Também conhecida como Simone, ela tem 42 anos, é católica, grata pela vida, é preta, orgulhosa de sua cor e mãe de quatro filhos.

Simone começou a trabalhar no aterro controlado com 18 anos. Dois anos após iniciar suas atividades como catadora, ela se associou à ACAMJG, escolha que ela afirma ter sido muito boa e que recomenda a todos aqueles que trabalham com a coleta de resíduos. Após associar-se, entre as principais mudanças que percebeu em sua vida, estão a carga horária de trabalho que ela considera boa, pois afirma que “tem horário para pegar e horário para largar” e por isso consegue “equilibrar melhor sua vida”. Além disso, o pagamento é feito “no dia certinho e é fixo”, e houve uma diminuição dos riscos no trabalho.
Simone, ao longo da entrevista, manteve-se sorridente e otimista ao falar de sua rotina laboral. Sempre muito grata a Deus por sua vida e pelo seu emprego, ela não se queixa de seu trabalho. Porém, reconhece que sua profissão impõe algumas dificuldades, entre elas o preconceito. Segunda ela, é possível notar um julgamento de algumas pessoas quando ela afirma ser catadora. Em lojas, por exemplo, quando precisa fazer algum cadastro e menciona sua profissão, ela sente que recebe um tratamento diferenciado.

Para Simone, o fechamento do aterro prejudicou a vida dos catadores. Ela afirma que o encerramento das atividades no local gerou um número muito alto de desempregados. Quando questionada sobre as promessas feitas pelo poder público, ela afirma que nada foi cumprido.
Simone acredita que a promessa do poder público de auxiliar diversas cooperativas locais com um polo de reciclagem seria algo muito bom para os catadores, mas isso não aconteceu. Ela afirma que “não era para estar assim, era para ter material para todo mundo trabalhar”. Poucos são os profissionais que continuaram em Jardim Gramacho trabalhando com os resíduos, pois a maioria, desempregada, precisou procurar novas fontes de sustento. Simone reside em Jardim Gramacho e não acredita que as promessas feitas pelo poder público para melhorar a região tenham sido cumpridas. Em relação ao saneamento básico, por exemplo, ela afirma: “a gente não tem nem água.”

Para Simone, o cumprimento do que foi prometido pelo poder público representaria um passo importante para uma mudança na vida dos catadores. Ela entende a importância de se trabalhar em uma associação e da criação de um polo de reciclagem no local. Isto poderia representar uma reinserção econômica daqueles que laboravam em Jardim Gramacho e dos que saíram após o fechamento do aterro, além da melhoraria da condição de vida dos catadores quando comparada à realidade que enfrentavam antes do fechamento do antigo depósito de resíduos.
Por fim, Simone é católica e ao longo da entrevista, falava sobre fé, amor e respeito. Para ela, uma melhoria nas condições de vida dos catadores pode acontecer através do respeito a todas as cores, a todos os credos, independente de condições sociais e através do amor e da generosidade.

Magna - Obra feita com entulho, de Vik Muniz
Magna – Obra feita com entulho, de Vik Muniz

Elenilda Amaro dos Santos: uma vida dedicada à luta pela valorização dos catadores

A terceira entrevistada foi Elenilda Amaro dos Santos. Elenilda é uma mulher negra, tem 55 anos e é moradora de Jardim Gramacho.

Elenilda começou sua trajetória como catadora com 16 anos de idade e durante décadas trabalhou no antigo aterro controlado de Jardim Gramacho. Inicialmente, Elenilda não estava associada ou cooperativada em uma organização de catadores e, assim como Simone, ela relata que associar-se foi um importante maneira de ganhar segurança ao realizar suas atividades.

Para ela, as garantias legais ao possuir um emprego formalizado e a diminuição dos riscos oriundos da coleta no aterro são benefícios que adquiriu ao fazer parte da ACAMJG. Ela afirma que quando trabalhava de maneira informal “caso se cortasse, machucasse ou ficasse mal no aterro”, não possuía uma cobertura adequada e menciona que conhece diversas pessoas que quase morreram por acidentes ocorridos no aterro.

Para Elenilda, tudo mudou para pior, pois o que foi prometido não foi cumprido. Ela menciona que foram prometidos cursos, e garante que isso ajudaria os catadores do local. Além disso, conforme mencionado na pergunta anterior, a catadora é uma defensora das melhorias advindas em associar-se e lamenta que as promessas relacionadas à ampliação e melhoria das cooperativas não tenham sido cumpridas.

Durante a resposta de Elenilda, não houve menção a aspectos positivos oriundos do fechamento do aterro. Ela confirma que muito catadores receberam uma pequena indenização, mas que não foi suficiente para garantir uma segurança econômica por muito tempo. No geral, a vida dela, de tantos outros catadores de Jardim Gramacho e de suas respectivas famílias mudou para pior. Ainda que houvesse dificuldades em trabalhar no aterro, para aqueles que dependiam dos resíduos, fechá-lo não foi uma decisão adequada.

Para Elenilda, o cumprimento daquilo que foi prometido pelo poder público seria essencial para a valorização dos catadores que ainda trabalham no local e para o retorno daqueles que precisaram sair do aterro para buscar novas fontes de renda. A concretização de um polo de reciclagem no local, juntamente com a valorização das cooperativas existentes e apoio à criação de novas, poderia mudar a realidade econômica do local.

Promessas quebradas e luta por reconhecimento

Ainda que o fechamento do aterro tenha completado uma década, o não cumprimento das promessas feitas pelo poder público ainda estão presentes nas falas das entrevistadas. Tanto Simone quanto Elenilda, ao serem perguntadas sobre o que ainda pode ser feito citaram o que foi prometido e não foi entregue. Neste sentido, a concretização das propostas que foram apresentadas em 2012, ainda podem e devem ser feitas.

O aterro controlado de Jardim Gramacho não poder ser visto apenas como um espaço que recebia os resíduos para serem tratados. Este tipo de análise desconsidera a figura central da reciclagem e tratamento de resíduos no Brasil, o catador. Neste caso, os milhares de catadores da região. Para tanto, a decisão de fechamento do local deveria ter sido feita necessariamente com o acompanhamento destas pessoas que trabalham ali e, na maioria dos casos, são moradores do entorno.

Inicialmente, o fechamento seria acompanhado de uma série de medidas que seriam capazes de atenuar os impactos sociais e econômicos para os catadores e a população no entorno. As promessas da realização de cursos, do fomento às cooperativas, da implementação do saneamento básico na região, entre outras, caso cumpridas, seriam essenciais para a reinserção ou manutenção destes indivíduos no mercado de trabalho. Porém, conforme apresentado anteriormente e reforçado ao longo das entrevistas realizadas, isso não foi concretizado.

Ainda que tenham se passado dez anos do fechamento do aterro, as promessas ainda estão na memória daqueles que as ouviram. Diante disto, deve-se sempre ter em consideração que nunca é demasiadamente tarde para o cumprimento daquilo que foi prometido. Evidentemente, o ideal seria que tudo fosse entregue em um prazo menor, mas os catadores de Jardim Gramacho ainda lutam para que suas histórias não sejam esquecidas e ignoradas pelo poder público.

Por fim, é de conhecimento público que milhares de pessoas dependiam economicamente das atividades realizadas no aterro controlado de Jardim Gramacho. O poder público, ciente de suas responsabilidades, escolheu ser omisso e ao longo desses dez anos manteve suas escolhas. Escolheu o desamparo, escolheu o descomprometimento e escolheu o desprezo. Nas palavras da catadora Estamira:

“Neste mundo de maldades não tem mais o inocente. O que tem, isto sim, por todo lado, é o esperto ao contrário.”


Rodrigo de Resende Gonçalves é administrador pela PUC-Rio, pós-graduado em Economia e Gestão da Sustentabilidade pela UFRJ, torcedor do Flamengo e entusiasta de uma sociedade mais justa.

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