Por Cida Fernandez*
O mestre Antonio Candido, já pelos idos de 1980, nos ensinava que a literatura é um direito humano porque é um bem indispensável à nossa humanização. E é indispensável à nossa humanização porque realiza funções fundamentais para o nosso desenvolvimento enquanto seres humanos. A literatura estimula e alimenta nossa imaginação, que é a essência da nossa humanidade; nos provoca e possibilita o exercício da alteridade, pois nos coloca no lugar de outra pessoa (as personagens); contribui para o desenvolvimento do nosso repertório linguístico, aumentando nossa capacidade de comunicação com o mundo; e, ainda, nos propicia de uma outra maneira conhecer o desenvolvimento do mundo e os conhecimentos produzidos ao longo da história.
Nenhum ser humano vive sem sonhos, sem imaginação. Os sonhos, no sentido da imaginação, são a principal matéria da cultura. Diferentemente de outras espécies – além do polegar opositor e da racionalidade – tudo o que o ser humano constrói, antes de construído, foi imaginado. Quando imaginamos uma casa – a “casa dos nossos sonhos” – a idealizamos e depois a construímos. Quando terminamos de construir já temos outra imagem, outro sonho, já queremos “aperfeiçoar” o que antes era ideal, e assim sucessivamente. Podemos dizer que nossa imaginação e nossos sonhos alimentam a nossa vida, o nosso movimento no mundo.
A literatura estimula a imaginação
À medida que lemos, vamos criando imagens, essas imagens nos transportam para outro tempo e outro espaço. Essa viagem no tempo e no espaço nos ajuda a perceber, ainda que inconscientemente, que a realidade não está dada, não é imutável, não é congelada, assim é porque assim tem que ser. Isso fortalece nossa capacidade de transformar as coisas, as nossas realidades. Esse exercício também nos alimenta a alteridade, quando nos colocamos no lugar de outra pessoa e podemos sentir empatia. Lynn Hunt em seu livro “A invenção dos Direitos Humanos” apresenta uma interessante pesquisa sobre como o romance epistolar, no contexto do século XVIII, contribuiu para que a sociedade fosse construindo empatia. Através da leitura do romance em forma de cartas, as pessoas começaram a se identificar com outras, não suas iguais nem próximas, mas as distantes e fictícias personagens dos romances de Rousseau e de Richardson, compreendendo através das histórias de Júlia, Clarissa e Pamela, que todas as pessoas são constituídas de sentimentos, sentem dor, alegria, amor, ódio. Esses romances ocuparam o centro do debate sobre literatura na Europa do século XVIII e, segundo a pesquisadora, tiveram um papel importante para que a noção de direitos humanos começasse a se desenvolver, certamente junto com outras artes e outros elementos daquele contexto, daquela realidade.
Quando lemos literatura, podemos viver em outras peles, tão diversas! Tão contraditórias! Além de permitir o exercício da imaginação, nos transportando para outros tempos e outros cenários, transporta-nos para peles de gente do bem e gente do mal. Exercita nossa alteridade, nossa compaixão, nossa parte boa e nossa parte má. E como trazido nos debates apresentados por Lynn Hunt, a tendência humana é sempre ficar ao lado dos oprimidos e não dos opressores. Isso não quer dizer que a literatura salva ninguém. Apenas que ela nos dá elementos para escolhermos ser melhores ou não em nossa humanidade.
A literatura aumenta a nossa capacidade de comunicação
Quem nunca ouviu a máxima “quem bem lê bem fala, melhor vê”. Através da literatura também podemos dar forma a conhecimentos que a partir de outras disciplinas escolares nos parecem tão distantes e abstratos. Por exemplo, como a revolução industrial estudada no livro didático é tão diferente da compreendida quando lemos a obra de Émile Zola, “Germinal”! No romance ela toma forma e sentimento, o texto nos transporta para o contexto e compreendemos num outro lugar da nossa alma o que aconteceu no mundo naquela época, com aquelas pessoas, para além dos fatos congelados no papel. Da mesma forma, podemos conhecer a cidade do Rio de Janeiro do século XIX nos livros de história, distante, impessoal e inexpressiva e torná-la amplificada e viva, se sentida, cheirada e vivida nas obras de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo. Podemos também entender a humanidade na atualidade das vivências de um menino treloso, em “As Mentiras de Paulinho”, de Fernanda Lopes de Almeida, e compreender que a criança tem muita imaginação e cria e conta, não necessariamente mente.
O exercício de ler literatura aos poucos vai nos permitindo perceber que nossas múltiplas visões e interpretações da realidade se entrecruzam, dialogam com os textos e se transformam em outras percepções de mundo, ampliado, múltiplo, possível. Com isso, nos desenvolvemos, desenvolvemos nosso olhar, desenvolvemos nossa humanidade, “saímos da caixinha”.
Como diz a compositora:
Minh’alma não tem tampinha
Minh’alma não tem roupinha
Minh’alma não tem não tem caixinha
Só tem asinha
(Daniela Mercury)
A essência da nossa humanidade é livre e quando falamos de humanidade falamos daquilo que nos distingue intimamente do restante das espécies: a produção de cultura, que só se realiza através do exercício da criação que é essencialmente potencializado pela imaginação.
Bem, se entendemos a importância da literatura no desenvolvimento da nossa essência humana, compreendemos perfeitamente o que dizia Antonio Candido, quando afirmou que a literatura é um direito humano.
Mas, como garantir o direito humano à literatura?
A primeira resposta que me vem à mente – não é nem definitiva, nem a única, mas sem dúvida é estruturante – é que sendo a literatura um direito humano, temos que compreender e defender que é papel do Estado suprir a sociedade com esse bem indispensável à nossa humanidade! Portanto, é fundamental a nossa organização como sociedade para lutar e incidir na elaboração de políticas públicas que garantam esse direito a todas as pessoas. Para que o Estado se responsabilize pela criação e manutenção de bibliotecas públicas, escolares e espaços de leitura de Norte a Sul do país. Para que crie e ofereça cursos de formação para novos profissionais e para a qualificação dos que já empreendem nessas áreas, de cada um dos segmentos envolvidos na economia do livro: da cadeia criativa (escritores/as, designers, ilustradores/as), da cadeia mediadora (mediadores/as, bibliotecárias/os, professoras/es, contadoras/es de histórias) e da cadeia produtiva e distributiva (editores/as, livreiros/as). Para que crie programas que apoiem a modernização e o desenvolvimento do nosso parque gráfico e garanta a competitividade da empresa nacional para enfrentar os grandes conglomerados internacionais que cada vez mais ocupam o território e o mercado brasileiro, levando à bancarrota livrarias e editoras nacionais, especialmente nos últimos anos.
Para que o direito humano à leitura e à literatura se efetive é fundamental continuar a pressão pela regulamentação da Lei 13.696, de 2018, que, após 12 anos de luta, institucionalizou a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), mas que está aí parada, novamente esperando para se efetivar; e se não nos mexermos como cidadãos e cidadãs, sujeitos de direito, ela não sairá do papel. Vale a pena lembrar que foi em função do movimento da sociedade – as políticas públicas só são elaboradas em função de uma demanda social – que, em 2006, foi firmada a Portaria Interministerial n. 1442, que era um acordo entre os Ministérios da Educação e da Cultura, que em seu art. 1º. instituiu o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), de duração trienal e que tinha por finalidade básica assegurar o acesso, fomento e fortalecimento da cadeia produtiva do livro. Importa dizer que, como estabelece a Constituição Federal em seu art.5º. inc. II, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, 1988), o que, significa que, se não houver lei, não haverá obrigação. Em 2006, portanto, foi dado o primeiro passo de muitos que viriam pela frente até a aprovação pelo
Congresso Nacional e sanção presidencial da lei que visa efetivar o PNLL como uma política de Estado. Para que não percamos a memória, no caminho tivemos ainda a aprovação do Decreto Federal n. 7559, de 2011, que instituiu o PNLL como uma estratégia permanente de planejamento, apoio, articulação e referência para a execução de ações voltadas para o fomento da leitura no país. Esse foi mais um dos passos que nos garantiu chegar até aqui. Agora estamos diante de mais um desafio: temos uma lei e a árdua tarefa de pressionar um governo – que vem cada vez mais impondo sacrifícios à sociedade, promovendo cortes radicais de recursos sobre as políticas sociais já conquistadas e constitucionais – para que regulamente um direito humano valorosamente conquistado. A Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias foi um dos atores que protagonizaram essa vitória e precisa estar na luta com todos os demais atores e segmentos para garantir essa regulamentação e sua implementação concreta, incluindo fontes de financiamento e mecanismos de controle social.
Mas, não basta!
É preciso entender a fundo o que significa garantir a literatura como direito humano, para poder efetivar esse direito fundamental como política de Estado em todas as suas dimensões. Dizer “literatura como direito humano” diz respeito à qualidade do direito, à qualidade da política que se quer e precisa construir para garantir seu acesso universal.
Garantir a literatura como direito humano é garantir seu usufruto enquanto obra aberta. Enquanto um texto, que lido, é sentido, cheirado e vivido por cada pessoa a partir do seu repertório de vida, das suas experiências pessoais, das suas leituras de mundo e de textos, de textos e de contextos.
Dar acesso à literatura enquanto obra aberta não responde a perguntas como “qual a personagem principal” ou “o que o autor quis dizer” – não que não exista uma personagem principal na estrutura literária ou um enredo intencionado, e que não sejam importantes, mas no acesso à literatura como direito humano na formação de leitoras e leitores, o ponto de partida é permitir à nossa humanidade que desfrute desse bem sem tampinha, sem roupinha, sem caixinha, só com as asinhas. Assim, a personagem principal de um determinado romance ou conto pode ser aquela com a qual a leitora ou o leitor se identifica e não necessariamente com aquela que a estrutura literária enquadra como tal. E o que autor quis dizer foi aquilo que tocou a alma do leitor, não importa se dentro da estrutura literária é isso ou não. Para entender, inclusive a estrutura literária, primeiro é necessário se fazer leitor, sem tampinha, caixinha, sem roupinha, só com pura asinha. Se a pessoa tem esse direito garantido, a sua formação como leitora ou leitor critico e autônomo construirá as possibilidades para essas outras compreensões fundamentais em seu processo de desenvolvimento futuro como cidadã/cidadão livre, incluída/o e sobrevivente numa sociedade cada vez mais excludente.
A literatura como obra aberta deve estar disponível às pessoas de todas as idades, sem censura, em sua diversidade de gêneros, tal como entendida por Antonio Candido:
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as
criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis
de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que
chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e
difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (CANDIDO,
2004, p. 16)
Mas para garantir o direito humano à literatura, não basta ter a diversidade de gêneros literários, é necessário também garantir a diversidade cultural. É preciso ter produções das diferentes culturas circulando: indígenas, ciganas, africanas, afro-brasileiras, afro-indígenas, europeias, asiáticas, norte americanas, latino-americanas, brasileiras, populares e eruditas, em todas as suas expressões.
Mas ainda não basta!
Para garantir o direito humano à literatura, é preciso um acervo organizado, disponível e de acesso livre para todas e todos, de todas as idades, cores, religiões e sexualidades. É preciso que o arranjo desse acervo convide, seduza e possibilite que as pessoas se formem leitoras e leitores. É preciso criar uma organização que convide e dê direito às pessoas de pegar, cheirar, folhear, saborear, gostar ou não. Ler inteiro ou pela metade. Achar chato, devolver e ir pra outro livro, exercer seu direito de leitor/a, como defende Daniel Pennac. Deitar no chão, sentar na cadeira ou no sofá e permitir-se transportar para outros mundos. Desligar-se da realidade e perceber que essa realidade não é imutável. E que o poder da mudança está em cada um e cada uma.
E, finalmente, para garantir o direito humano à literatura é fundamental a mediação humana. A mediadora ou mediador de leitura que, com certeza deve ser leitor/a, apresenta a literatura para pessoas que ainda não foram seduzidas pela leitura e também para quem já é leitor ou leitora. Rodas de leitura, contação de histórias, leituras compartilhadas, clubes de leitura propiciam momentos de prazer e deleite, e também de reflexão e aprofundamento – ainda que inconsciente – sobre si mesmo e sua capacidade de autonomia no mundo. O usufruto de um texto literário como obra aberta fortalece os vínculos afetivos e a confiança entre as pessoas, além de efetivar a literatura como um direito de todos e todas.
A partir desta perspectiva, as Bibliotecas Comunitárias têm defendido a literatura como Direito Humano e têm perseguido garantir o direito humano à literatura. Este texto foi escrito especialmente inspirado nessas pessoas que fazem esse sonho caminhar para a realidade, coletivamente, como diz outro compositor:
Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto é realidade
(Raul Seixas)
E assim, o coletivo de Bibliotecas Comunitárias caminha junto, construindo esse sonho, lutando por políticas públicas, construindo bibliotecas nas periferias, inventando novas práticas sociais de leitura, estimulando a criação de novos textos e reinventando seus contextos. Sonhos que não têm fim, pois a qualidade da garantia do direito humano à literatura é como a utopia ou o horizonte, é como a formação leitora, nunca tem fim, sempre pode ser melhor. Nossa biblioteca, nossa produção literária, nosso acesso, nossas práticas, nossas políticas públicas sempre podem ser melhores e alimentadas por novos sonhos, que sonharemos juntas e juntos e que se tornarão realidade, realidade que sonhará outro sonho, que sonharemos juntas e juntos e que…
Até o infinito.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Fernanda Lopes de, IACOCCA, Michele (ilustr.). As mentiras de Paulinho. São Paulo: Ática, 1987.
BRASIL.[Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [recurso eletrônico]. — Brasília : Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Documentação, 2019. Disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoConstituicao/anexo/CF.pdf. Acesso em: 19 mar 2020.
______ Portaria Interministerial n. 1442, de 10 de agosto de 2006. Institui o Plano Nacional do Livro e Leitura. MEC/MinC. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 154, p.18-19, 11 ago. 2006.
______Decreto no. 7559, de 01 de setembro de 2011. Dispõe sobre o Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 171, p.4, 05 set. 2011.
______ Lei Federal no. 13.696, de 12 de julho de 2018. Institui a Política Nacional de Leitura e Escrita. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 134, p.1, 13 jul.2018.
CANDIDO, Antonio. O Direito à Literatura e outros ensaios. Coimbra, PT: Angelus Novus, 2004.
HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MERCURY, Daniela. Proibido o carnaval. In: MERCURY, Daniela e VELOSO, Caetano. PERFUME, 2019.
PENNAC, Daniel. Como um romance. São Paulo: Rocco/L&PM Pocket. 2008. SEIXAS, Raul. Prelúdio. In: SEIXAS, Raul. Gita. Philips, 1974. ZOLA, Émile. Germinal. 2a. Ed. São Paulo: Martin Claret, 2006.
* Bibliotecária e pesquisadora, assessora da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias e colaboradora do Programa Direito à Leitura, do Centro Luiz Freire. Olinda, PE, março/ 2020.
Texto originalmente publicado em: Revista Emília