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Cultura Viva
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O carnaval inventou um Brasil possível

Da Redação/Brasil de Fato

Um vídeo reel com texto do historiador, compositor e escritor carioca Luiz Antônio Simas, na voz de Cida Falabella e imagens de Pedro Pedro, viralizou nesse carnaval nas redes sociais. A gente recebeu e partilhou também nas nossas redes.

Para tentar entender melhor o que esse intelectual orgânico do subúrbio carioca quer dizer, selecionamos alguns trechos de uma entrevista do Simas (como é conhecido e chamado com afeto) ao Rodrigo Chagas, do jornal Brasil de Fato, na qual reflete sobre as raízes do carnaval brasileiro.

“O carnaval dá uma lição muito bonita, que a gente pode fazer política com poética e a gente pode fazer a poética com a política. A poética e a política podem andar juntas, elas não precisam andar dissociadas”

Confira parte dessa entrevista agora.

BdF – Uma frase publicada por ti nas redes sociais chama atenção: “o carnaval, inventou o Brasil”. Podes começar contando pra gente um pouco da tua percepção sobre a importância dessa festa, a importância do carnaval para a formação de uma identidade do povo brasileiro?

Luiz Antônio Simas: Quando eu falo que o carnaval inventou o Brasil é uma espécie de provocação, porque eu gosto de chamar atenção para o fato de que o Brasil foi projetado a partir de uma ideia de exclusão. A gente tem que encarar isso, não dá pra gente ficar em busca de discursos excessivamente afáveis, conciliatórios, quando a nossa história é fundamentada em projetos de colonialidade que são excludentes.

O Brasil exclui grande parte da população dos direitos básicos de cidadania. É um projeto concentrador de renda, aniquilador dos corpos não brancos. Isso é um projeto, é o projeto do Brasil.

Eu costumo comparar esse Brasil a uma espécie de muro, o Brasil oficial, mas gosto de dizer que, nas frestas desse muro, esses que foram subalternizados pela experiência histórica da exclusão e foram construindo sentidos de vida. O carnaval é um exemplo desse tipo de coisa, porque o carnaval chega ao Brasil como uma festa europeia trazida pela colonização portuguesa, mas no Brasil adquire características muito populares, sobretudo pelos cruzamentos entre a herança do carnaval português e as diversas africanidades, as musicalidades, as espiritualidades, as percepções de mundo.

“Nós não inventamos o carnaval, mas de certa maneira, o carnaval inventou esse Brasil possível, esse Brasil que almejamos dentro de uma perspectiva profundamente democrática”

Quando eu falo que o carnaval inventou o Brasil possível, é porque, para mim, o Brasil possível é o Brasil da diversidade, é o Brasil da solidariedade, é o Brasil da construção de sociabilidade, é o Brasil que contesta um modelo hétero-patriarcal, normativo, branco. E esse Brasil diverso, transgressor, inventor, contestador e plural é o Brasil que se manifesta no carnaval. Por isso é que eu digo que o Brasil possível é aquele que o carnaval colocou para nós. Nós não inventamos o carnaval, mas de certa maneira, o carnaval inventou esse Brasil possível, esse Brasil que almejamos dentro de uma perspectiva profundamente democrática.

BdF – Pensando nessa perspectiva popular sobre o carnaval, você acha que a festa desse ano tem um caráter diferente, considerando os anos de pandemia e também o contexto político atual?

Um dos maiores equívocos sobre o carnaval é considerá-lo uma festa de alienação. Na verdade, ao longo da história do Brasil, o carnaval foi uma festa altamente politizada. Já na década de 1880, trouxe a campanha abolicionista para as ruas, com as grandes sociedades do Rio de Janeiro desfilando e arrecadando dinheiro para fazer fundos de alforria. O mesmo aconteceu nos carnavais da década de 1980, que traziam a perspectiva da redemocratização após o ciclo autoritário da ditadura militar.

Então, acredito num carnaval de rua efusivo, em parte devido ao abrandamento da pandemia de covid-19. Apesar de a covid-19 ainda estar presente, temos um sistema vacinal mais eficiente. A maioria das pessoas que vão brincar carnaval está vacinada, e a extrema direita fascista que não gosta de carnaval provavelmente ficará em casa falando mal do Brasil ou fazendo retiros espirituais.

Então, de certa maneira, acredito que o carnaval será uma celebração da vida, diante das circunstâncias que vivemos. Será um encontro com a vida, mais do que um reencontro com a rua. Afinal, sobrevivemos a quatro anos de Bolsonaro misturados com a pandemia, e isso é quase inacreditável. Como seres humanos, nos adaptamos a tudo.

“A luta e a festa são irmãs”

BdF – Tu fizeste um retrospecto histórico sobre a intensa disputa entre uma elite que queria um carnaval de salão em detrimento do carnaval de rua. Hoje em dia, vemos um processo de mercantilização e domínio de marcas sobre o carnaval, com circuitos e partes inteiras das cidades dominadas por marcas de cerveja e, agora, também de remédios. Trata-se de uma ameaça à essência do carnaval?

Isso é algo que tem que ser encarado com extremíssima seriedade. Há dois fatores muito fortes que ameaçam o carnaval hoje em dia. O primeiro é o avanço do fundamentalismo religioso, com alguns setores pentecostais apontando para o carnaval com fanatismo religioso e satanização da festa. Aqui é importante não generalizar, porque há evangélicos que respeitam, gostam e brincam o carnaval.

A outra ameaça, que parece um paradoxo mas não é, é a captura do carnaval pela lógica da circulação do capital pura e simples. Embora o carnaval seja importante para a economia criativa, gerando renda e colocando comida na mesa de muitas pessoas, a domesticação da rua pelo mercado é um perigo, pois pode aniquilar a espontaneidade do carnaval de rua. Quando você transforma o carnaval num certo instrumento de propaganda de massa. Eu até falo em tom pouco jocoso, porque é como se você saísse da pedagogia de massas para a propaganda de massas, submetendo o carnaval à lógica de uma ordem pública atravessada pelos interesses do mercado. Não é só o carnaval que está ameaçado, é a própria maneira como encaramos a cidade e como encaramos a rua.

A maneira como encaramos o carnaval reflete a maneira como encaramos a rua e a cidade como um todo. É importante discutir que tipo de rua queremos, se é uma rua que proporciona encontros espontâneos ou uma rua adequada apenas à circulação de mercadorias, adequada a corpos precarizados, dentro de uma lógica cruel marcada pelo tempo do trabalho.

“A maneira como encaramos o carnaval reflete a maneira como encaramos a rua e a cidade como um todo.”

BdF – Você mencionou a palavra “renovação”, e eu gostaria de trazê-la novamente para o debate, pensando em novas expressões artísticas e culturais, novos ritmos que têm ganhado protagonismo no carnaval e que são considerados novidades. O samba e outros ritmos históricos do carnaval não são os únicos a se consolidarem. Como tu observas essa chegada de novas expressões à festa?

Acredito que o carnaval é uma celebração dinâmica, que está em conexão com o que está acontecendo hoje em dia. Ele tem conexões importantes com as musicalidades das ruas, com ritmos como o rap e o hip-hop. Hoje em dia, temos blocos de carnaval tocando de tudo um pouco, e acho que isso faz parte da festa.

No entanto, precisamos lembrar que o carnaval é a festa da ancestralidade, e que há uma diferença entre algo antigo e algo ancestral. No nosso trabalho no Dicionário da história social do samba e no Filosofias Africanas, converso com o Nei Lopes sobre essa diferença.

O ancestral é algo que atravessa o tempo e sempre será contemporâneo, sempre falará com o presente. Portanto, é importante que o carnaval tenha a capacidade de conciliar o novo e o tradicional, pois é isso que lhe dá potência como festa. Não podemos ter um carnaval engessado que se mantenha como um bloco de 1912. Hoje temos outras demandas, protagonismos e dilemas. O carnaval repercute tudo isso.

O carnaval tem uma dupla face: ele é influenciado pelo contexto em que está inserido, mas também é um influenciador e criador de contextos. A festa está sempre flertando com tudo isso, mas nunca devemos esquecer a dimensão de ancestralidade que faz parte da sua essência. Essa dimensão é uma parte importante da festa e não pode ser esquecida, mas também não é absolutamente contraditória, alheia ou inimiga do grande folguedo de rua. A luta e a festa são irmãs.

Vale a pena ouvir e partilhar esse estrato de pouco mais de 3 minutos da entrevista do Simas ao Brasil de Fato.

Edição de Simone Machado. Leia a entrevista completa no Brasil de Fato.

Imagem de capa, colagem por Claudio Barría com fotografias Marcelo Valle e Marcelo Costa Braga.

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