ISSN 2764-8494

ACESSE

Artes
Seu tempo de leitura: 4 minutos

Psicopatologia e Literatura Ep.1: Homero e a morbidez

Por Adriana Costa

Ouça ou leia, ou leia e ouça…

A atimia, a eutimia e a distimia são as maneiras como o indivíduo apreende o seu estar no mundo, sente-se ser, sente-se viver. A eutimia está ligada a um estado fisiológico que relaxa o coração. É o estado de sentir –se reconciliado consigo mesmo e apaziguado. A atimia e a distimia são o contrário disso sendo graduações do desejo de abandono da vida, casos de uma doença do ser.

Na verdade o ser humano sofre, como diz Constantin Noica, com sua própria constituição: “ser nascido no tempo e que não encontra a sua medida no tempo” esta complexa condição da realidade pode levar a um sentimento de exílio na terra, ao cultivo de uma morbidez e a uma incapacidade de determinar –se – “akrasia”Este descompasso entre o que o homem intui diretamente e o que compreende racionalmente pode se transformar num abismo afetivo, um curto-circuito emocional.

Esta invalidação da vida torna –se uma impotência de fazer felizes aos outros e a si mesmo, levando muitas vezes à consequências trágicas. É esta desordem que Homero vai relatar em sua obra Ilíada, despertando em seus leitores o entendimento das sutilezas e desventuras da vontade no exercício da inteligência humana.

“Homero não foi o Dante da Antiguidade, foi a Bíblia dos gregos. Nenhum outro livro lhes pareceu mais digno do que este de servir ao ensino na escola. Para os antigos Homero é um manual. Homero é o mais velho livro escolar do mundo. Todas as gerações da Grécia devem lhe a educação” Otto Maria Carpeaux Ensaio : O sol de Homero 

Homero observa que a desordem da sociedade é a desordem da alma de seus componentes, especialmente os da classe governante. “O peixe apodrece pela cabeça” A Ilíada é portanto um discurso poético – sagrado com caráter instrutivo de advertência ao homem comum. São palavras sábias de valor paradigmático que buscam apresentar uma possibilidade humana e revelar um perigo.

Homero apresenta o erro ou desvario heróico em seu estado de cegueira do espírito, obnubilação; exemplificando a complexa noção de áte (perdição)“Perdição à todos perde” O ciclo da áte compreende: excesso –perdição – engano- punição – reconhecimento do excesso e reparação. A vivência de crises individuais pode ser vista como índice de uma desordem geral. Homero apresenta um herói, expressão de excelência e piedade, vivenciando áte ou seja, a fuga de suas responsabilidade por medo ou ira. Este comportamento aponta uma queda hermenêutica de valor na sociedade. 

O detalhamento processual deste ciclo da desordem é um estudo psicológico da ação humana. E a impiedade provocada por este ato, só pode ser sanada com humildade, respeito e o reconhecimento do erro.“ Flexível é o espírito dos bravos “ as sutilezas desta desventura são esmiuçadas através do acompanhamento das consequências trágicas dos feitos e são expressas tanto no desenrolar da Guerra quanto nas vidas particulares dos personagens. Vale ressaltar que Homero é um “aedo” fiel as tradições e que devemos entender a Ilíada dentro de todo o referencial mitológico da cultura grega. “Nada penetra de muito grande na vida dos mortais sem perdição“.

A Ilíada é a mais longeva de todas as histórias de guerra já contadas. Composta entre os anos 750 e 700AC, é um épico que narra os últimos eventos do cerco, de dez anos de duração, à cidade de Tróia (Ílion) em 1250AC.

Existem quatro tradutores para o português, do épico clássico disponíveis no Brasil: Carlos Alberto Nunes, Odorico Mendes, Haroldo de Campos e Frederico Lourenço. Em nossa análise, no próximo encontro, vamos trabalhar com a tradução de Frederico Lourenço.

Segundo Eric Voegelin em seu artigo na Review Politics vol15 : The World of Homer
“the blinding through passion, the áte, is not the cause of disorder, is disorder itself”

Ele aponta em sua análise que a Ilíada estuda o fenômeno da decadência de uma sociedade, quando os contratos costumeiros já não são aceitos e as ações se tornam irracionais.

Apresenta Aquiles, obcecado pela certeza de sua morte: (morbidez)

“the shadow of death became an obsession with death that isolates him from the common life of humanity”

O que gera um coração impiedoso – (hetor) um espírito orgulhoso que o leva a cometer desvarios. 

No inverno de 1940, Simone Weil publicou num jornal francês “Cahiers du Sud” seu ensaio “L’Iliade ou le poeme de la force”
Neste texto, escrito no início da segunda guerra mundial ela alertava:

“where there is no room for reflection, there is none either for justice or prudence. hence we see men in arms behaving harshly and madly”

No ensaio Weil fala da impiedade da força e da indignidade da desordem: 

“Force is a pitiless to the man who possesses it, or think he does, as it is to its victims, the second it crushes, the first it intoxicates.The truth is, nobody really possesses it. The human race is not divided up, in the Iliad, into conquered persons, slaves, supplicants the one hand, and conquerors and chiefs on the other. In this poem is not a single man who does not at one time or another have to bow his neck to force.The common soldier in the Iliad is free and has the right to bear arms, nevertheless he is subject to the indignity of orders and abuse”

A Ilíada é um estudo sobre a desordem na sociedade, da recusa do homem em viver a estrutura tensional da existência. 

Se quiser entender mais sobre a obra, veja esta entrevista com informações preciosas sobre Homero. 


Referências de leitura :

Ilíada : tradução de Frederico Lourenço Penguin Companhia das Letras , 2013 
Noica, Constantin – As seis doenças do espírito contemporâneo
Editora: Best Seller; Edição: Edição de bolso (24 de fevereiro de 2011)
Weil, Simone – Bespaloff, Rachel : War and the Iliad – Translated by Mary McCarthy – New York Review Book


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