ISSN 2764-8494

ACESSE

Socioambiental
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Sistemas Agroflorestais: um caminho para a regeneração da Terra

Por Giuliana Capello

Os sistemas agroflorestais mostram que não precisamos escolher entre florestas e agricultura, podemos produzir alimentos cuidando do planeta. Houve um tempo em que se dizia que, para recuperar um pasto degradado ou um solo empobrecido pelo uso intensivo de agrotóxicos, bastava deixá-lo quieto por alguns anos. A natureza, sem qualquer intervenção humana, cuidaria da regeneração daquela área.

No seu ritmo, no seu tempo. É bem verdade – e muito lindo de perceber – que a vida brota da terra. Que muitos animais são polinizadores e que há uma rede natural de cooperação biológica formidável para que o equilíbrio se restabeleça sempre.

Mas o problema é que a humanidade chegou em um ponto tão brutal de interferências maléficas nos mais diversos ecossistemas que minimizar impactos não é mais suficiente. É preciso correr no tempo (mas não contra o tempo). E dar uma mãozinha ou muitas a este que talvez seja o trabalho mais importante do presente e do futuro da humanidade. Regenerar a vida no planeta.

O cultivo agroflorestal usa muito o conceito de plantas companheiras.

O cultivo agroflorestal usa muito o conceito de plantas companheiras. Foto: Pixabay

Pois é aí que entram as agroflorestas ou sistemas agroflorestais (SAFs). Elas têm potencial para serem grandes aliadas nessa tarefa. O conceito ganhou repercussão no Brasil a partir do trabalho do agricultor e pesquisador suíço Ernst Götsch.

Em mais de 40 anos de experiência no país, ele desenvolveu um conjunto de técnicas capazes de reintegrar a produção agrícola com a regeneração da paisagem, especialmente a florestal. Ensinou a cultivar comida sob a copa de grandes árvores perenes, igualmente inseridas por mãos humanas.

Sua fazenda na Bahia, onde vive com a família desde 1984, é exemplo vivo disso. Por lá ele recuperou 410 hectares de solo degradado, viu ressurgir mais de uma dezena de nascentes e celebrou o reaparecimento de diversas espécies da fauna nativa. Suas lições já foram compartilhadas com mais de 8 mil famílias brasileiras que tiveram contato com seus cursos e palestras.

Agroflorestas ou agricultura sintrópica?

“O conceito de agroflorestas é muito amplo, existem diferentes possibilidades dentro dele. Na Europa, por exemplo, ele vem da definição criada pelo ICRAF, o World Agroforestry Center, que abarca muitas versões, digamos assim. Algumas permitem simplesmente uma rotação de cultura entre um ano e outro, usando ou não insumos químicos”, afirma o jornalista Felipe Pasini. Felipe é um dos pioneiros na divulgação dos trabalhos de Götsch, que acompanha de perto há 15 anos. Além disso, é produtor em sua fazenda no Rio de Janeiro, que ainda sedia o Centro de Formação em Agricultura Sintrópica.

Foto: Universo da Floresta

Segundo ele, na América Latina e também no Brasil, o termo agrofloresta ganhou um tom diferente, muito em função do trabalho de Ernst com frentes campesinas e cooperativas de pequenos produtores. “Essas diferenças de conceito levaram seus alunos e o meio acadêmico a criar o nome ‘agrofloresta sucessional’ para diferenciar do trabalho feito em outras agroflorestas, já que era algo tão específico. Mais tarde, em 2013, o próprio Ernst resolveu rebatizar de agricultura sintrópica, um termo que ele já usava desde a década de 1990”, conta Pasini.

Logo depois, em 2016, a agricultura sintrópica ganhou um impulso importante em 2016 a telenovela Velho Chico, transmitida pela Rede Globo. Com consultoria técnica de Felipe Pasini e sua parceira Dayana Andrade, o tema foi inserido nos conflitos da trama e conquistou uma expansão incrível.

Princípios de vida nas agroflorestas

Nas palavras de Ernst, em todo lugar onde há vida ela cria, com o passar do tempo, um saldo positivo de energia e complexidade. É um saldo sintrópico, contrário à ideia de entropia da Termodinâmica, que representa a degradação de energia e a desordem de um dado sistema.

“A agricultura que denominei de sintrópica trabalha com esses princípios da vida, submetidos à própria vida, em todas as relações entre as espécies e intraespecíficas, baseadas no amor incondicional e na cooperação. Todas as espécies são equipadas para se comunicar com todas as outras. E todos os indivíduos e cada geração deles, para cumprir suas funções, são movidos pelo próprio prazer interno, e todos eles formando um grande macro-organismo”, diz Ernst Götsch.

Este e outros ensinamentos estão disponíveis em vídeos e conteúdos do site Agenda Götsch, idealizado por Dayana Andrade, comunicadora e doutora em Ciências Ambientais e Conservação pela UFRJ, com tese defendida sobre a adotabilidade da agricultura sintrópica.

Para Ernst, então, não se trata de uma receita de como fazer agricultura em um determinado lugar. É um modo de pensar, uma filosofia, um conjunto de princípios que, traduzidos na prática, nos levam à agricultura sintrópica. Assim, não importa se estamos nos trópicos, no Mediterrâneo ou em lugares áridos. Os princípios são os mesmos.

Foto: Facebook | Agenda Gotsch

Alimentar e restaurar a um só tempo

Por essas características, a agricultura sintrópica é em si regenerativa e restauradora dos ambientes. Isso porque ela trabalha ouvindo e observando a natureza e seus ciclos, com o intuito de acelerar os processos naturais de sucessão ecológica (tempo) e a estratificação (espaço), criando condições ideais para o desenvolvimento das plantas.

É uma agricultura que se desenvolve sempre incrementando a quantidade e a qualidade de vida consolidada. Dessa forma, ela se baseia em processos, não em insumos agrícolas. “A colheita agrícola passa a ser vista como um efeito colateral da regeneração de ecossistemas, ou vice-versa”, pontua Dayana.

Foto: Peter Feghali | Unsplash

“É uma solução muito concreta. Globalmente, a humanidade falhou em seus modelos de agricultura, que têm degradado os ecossistemas. A gente costuma dizer que o grande problema da agricultura foi a mecanização, a Revolução Industrial, os agroquímicos, mas hoje sabemos que, embora isso tudo tenha acelerado a degradação, a agricultura desde 10 mil anos atrás tem causado alterações nos ecossistemas sempre no sentido de degradá-los”, expõe Felipe.

Ele lembra que existem hoje vários esforços de restauração alinhados à iniciativa da ONU de eleger o período de 2021 a 2030 como a Década da Restauração dos Ecossistemas. “Mas nós, seres humanos, não sabemos lidar com os ecossistemas. Temos uma interpretação muito errada e estamos vendo alguns projetos falharem nesse sentido”.

Agricultura sintrópica para a restauração

Como exemplo, Felipe menciona os bilhões de árvores plantadas na China, com grande alarde na mídia. Imagens de satélite mostram que menos de 15% sobreviveram. Na África, o projeto da Grande Muralha Verde, criado para conter a expansão do deserto do Saara, teve uma taxa de sucesso tão baixa que eles decidiram restringir a implantação para áreas onde chove mais de 400 mm ao ano, o que exclui quase toda a região. No Sul da Europa, em Portugal e na Espanha, projetos de restauração tiveram taxa de sucesso menor que 2%.

Foto: Facebook | Agenda Gotsch

“Na agricultura sintrópica não temos essa distinção em termos de abordagem, porque trabalhamos com as dinâmicas dos próprios ecossistemas para substituir a adubação, a irrigação e para ter comida com qualidade. Então, agricultura e restauração ambiental se confundem no meio disso porque têm o mesmo propósito”, afirma Felipe.

Nesse sentido, a agricultura sintrópica é ferramenta essencial para essa restauração. “Inclusive, o legado que o Ernst tem deixado é o que existe de mais inovador e promissor para a restauração de ecossistemas e para dar uma resposta também para a agricultura”.

Agroflorestas em grande escala, sim, por favor

Felipe conta que as agroflorestas já acontecem na pequena escala, mesmo com os desafios que temos de acesso ao conhecimento, a crédito e assistência técnica. “Para a grande escala, o obstáculo ainda é a mecanização, algo a que o Ernst tem se dedicado nos últimos cinco anos, desenvolvendo máquinas para que se possa ter um aparato tecnológico que permita aplicar os princípios de modo a sermos economicamente competitivos com o modelo convencional de agricultura”.

Aos que imaginam que a agricultura sintrópica é algo restrito a círculos alternativos, ele rebate: “A postura alternativa é egoísta, quer fazer o próprio quintal ser bom, mas não muda o modelo dominante. Na história da agricultura isso aconteceu diversas vezes. Se uma agricultura alternativa não vira dominante ela fatalmente acaba junto com a falência do modelo dominante. Não podemos permitir que isso aconteça”.

Foto: Facebook | Agenda Gotsch

Mas como fazer para que os agentes do agronegócio parem para ouvir a experiência da agricultura sintrópica? Para Dayana, é preciso desconstruir ideias muito sedimentadas no setor antes de começar a construir novos conceitos.

“Em Portugal, tivemos a oportunidade de trabalhar com crianças entre 7 e 10 anos em cinco escolas públicas de pequenas vilas. Foi muito mais fácil porque elas não tinham uma ideia fixa na cabeça, não precisamos desconstruir nada. O resultado foi incrível porque elas levaram isso para as famílias, que mudaram os jardins de casa, as escolhas alimentares e até praças públicas adotaram práticas semelhantes. Essas crianças têm um conhecimento de microbiologia do solo que alguns agrônomos teriam dificuldade para aceitar num primeiro momento”, conta.

Da monocultura à agricultura sintrópica

No Brasil, já existem histórias de grandes fazendeiros de monocultura que foram impactados pela agricultura sintrópica. “Sabemos de grandes produtores que, quando entraram em contato com a prática dessa agricultura mudaram um pouco o olhar, quiseram experimentar e repensaram a própria atividade. É o que o Ernst diz, que aprendemos na escola a explorar recursos, mas não a gerar recursos”.

“Quando eu estava na universidade estudando Agronomia na USP, eu já notava que haviam dois mundos muito separados. Pois, de um lado, tinha o pessoal do agronegócio e, do outro, o pessoal da agroecologia, das ONGs etc. Eles nunca dialogavam, era muito polarizado mesmo”, conta a agrônoma Maria Vitória Constantin Vasconcelos, que depois de formada voltou à Mata do Lobo, fazenda do pai, em Rio Verde, Goiás, disposta a convencê-lo a ceder uma parte das terras para experiências em sistemas de agroflorestas.

“Ele topou, mas precisei passar um ano conhecendo o trabalho dele com as monoculturas de soja e milho. Na faculdade, eu tinha maus olhos para isso, mas ao mesmo tempo pensava que meus estudos e oportunidades vinham daquela atividade”, desabafa Maria Vitória.

“Tem um coisa que pouco se fala, mas o pessoal do agronegócio vive com a corda no pescoço. É um trabalho muito difícil porque é muito dependente dos insumos e de toda a lógica dessa cadeia. Ou seja, temos aí uma oportunidade de levar aesses produtores algo que pode gerar mais autonomia e independência para eles”.

Os sistemas agroflorestais são importantes justamente porque proporcionam a manutenção da fauna e flora capazes de responder e alterar o ambiente. Foto: Maurício Uchôa Bruttos | Pixabay

Mudanças na paisagem com a agroflorestal

Em 2017, ela conseguiu uma consultoria com Ernst Götsch na fazenda. Dos 2400 hectares, o pai cedeu 47 hectares para a criação de dois sistemas de agroflorestas. Um com foco na produção de café e outro voltado ao cultivo de limão siciliano, ambos consorciados, com plantios de mandioca, banana, cedro, mogno, eucalipto e diversas outras espécies, seguindo a boa cartilha de princípios (não fórmulas prontas) dessa corrente da agricultura.

“No início, meu pai dizia que era ‘o projeto dos meninos’, referindo-se a mim e meu marido, gestor ambiental. Agora ele já fala em ‘nosso projeto’. Foi muito importante ver como essa mudança, por meio das agroflorestas, trouxe novas possibilidades, abriu nossos olhos e nos deu mais autonomia, mais liberdade, e até as pessoas trabalham mais satisfeitas”, comemora.

Foto: Instagram | Mata do Lobo

Suas conquistas ela compartilha no perfil @matadolobo, no Instagram. Lá é possível ver fotos aéreas dos sistemas de agroflorestas e das experiências com novos maquinários que devem ajudar na viabilização dos sistemas em escalas maiores. “Às vezes, quando estou no meio do campo e olho ao redor e percebo a mudança na paisagem. Hoje muito mais biodiversa, com mais animais e tudo, eu me pergunto, emocionada, por que não vimos isso antes”.

Essa é uma matéria da revista Ciclo Vivo.


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