Por Laura Basu
Meu marido sofre de transtorno de deficit de atenção (TDA). Bem, ele realmente não foi diagnosticado. Seu TDA é demais para ele conseguir isso. Tentar obter um diagnóstico para Erik na Holanda, onde moramos, envolveu vários telefonemas para sermos direcionados ao lugar certo; preencher formulários e questionários; uma longa espera para conseguir uma consulta; ter que preencher uma bateria de formulários e questionários com um psicólogo; desenterrar velhos documentos da época da velha escola e organizar entrevistas com o pai de Erik (que também tem suspeita de TDA) e com seu irmão (diagnosticado com TDAH, o transtorno de deficit de atenção e hiperatividade) para descobrir como ele era quando criança.
Déficit de atenção ou aversão a burocracia?
O fato é que Erik não concluiu o processo. É um milagre que qualquer pessoa com essa condição neurológica o faça. A revista ADDitude, uma publicação para pessoas com TDA e TDAH, lista os sinais de TDA, tais como “memória de trabalho deficiente, falta de atenção, facilidade para se distrair e funções executivas deficientes”. As funções executivas são habilidades que ajudam você a fazer coisas como planejar, gerenciar o tempo e realizar várias tarefas ao mesmo tempo. Erik não tem o “H” da TDAH: ele não é tão hiperativo. Mas as pessoas com TDA não se dão bem com a burocracia.
Erik não gosta que lhe digam que a maneira como seu cérebro funciona é “deficiente”. Ele passou os primeiros 40 anos de sua vida sem saber que poderia ter TDA. No entanto, quando criança, alguns diziam que ele era estranho, estúpido ou frágil. Ele, então, então passou cinco anos lutando com a ideia de tê-lo: primeiro rejeitando o rótulo, depois aceitando-o em particular, mas ainda com medo de falar sobre isso com os outros. “Em toda a minha vida as pessoas pensaram que eu era um palhaço. Não quero confirmar isso”, foi o que ele disse quando perguntei por que nunca havia contado aos seus amigos.
Criatividade robusta
As pessoas pensam que ele é um palhaço simplesmente porque ele é o pensador mais criativo que já conheci. Erik é um visionário. Tem grandes ideias, grandes sonhos, grandes planos. Ele nem sempre está tão animado em torná-los realidade. Entre os projetos inacabados estão: o nosso primeiro apartamento ainda por ser finalizado e onde moramos por oito anos; um inovador protocolo de internet; e um novo regime de propriedade intelectual para produtos farmacêuticos.
Agora com 45 anos, Erik está adotando o que chama de “mentalidade de LA”: ser dono de sua divergência. É uma jornada em que estamos juntos, ele com seu TDA e eu com uma doença autoimune crônica que fui diagnosticada em 2017, enfrentando o fato de que o consumo excessivo de álcool e o tabagismo contumaz da minha juventude podem estar relacionados a algo mais profundo do que o cumprimento do meu dever patriótico britânico.
Referenciando…
Os livros do médico e escritor húngaro-canadense Gabor Maté nos guiaram em nossas viagens. Maté escreveu sobre TDA (ele o tem), doenças crônicas, vício e comportamento compulsivo (ele também o exibe).
Maté discorda da opinião geral de que a causa do TDA é principalmente genética. Ele argumenta que, embora haja um elemento genético, o que determina se alguém o desenvolve ou não são os cuidados que uma criança recebeu durante a infância. A fiação de cinco sextos dos circuitos do cérebro é gerada após o nascimento. Pessoas com TDA têm conexões diferentes no córtex pré-frontal, que controla a autorregulação e a atenção. Para que ocorra o desenvolvimento ideal do cérebro, as crianças precisam de comida, abrigo e um vínculo seguro com seus principais cuidadores.
Um condição capitalista
Mas não se trata de culpar pais e mães. Não receber a criação adequada não significa necessariamente abuso ou negligência, embora possa ser. Bastará estarem estressados ou incapazes de se sintonizar com seu filho. Maté nasceu de pais judeus em Budapeste, apenas dois meses antes de os nazistas ocuparem a cidade. Mas não é necessário chegar a esse extremo. Mostre-me um pai que não está em estresse total lutando com trabalho, as finanças e tentando criar seus filhos sem a ajuda e o sono suficientes.
Essas são características neurofisiológicas individuais, mas surgem em contextos sociais. Nossas sociedades capitalistas criam famílias estressadas, escolas prisionais e locais de trabalho tóxicos. Não é à toa que nossos cérebros estão entrando em colapso em uma escala sem precedentes. O TDA é uma doença capitalista.
TDA é a nova esquizofrenia
Não sou a primeira pessoa a dizer isso. Em seu livro de 2011, Realismo capitalista, o falecido Mark Fisher escreveu que o TDAH era “uma patologia do capitalismo tardio, uma consequência de estar conectado a circuitos de entretenimento e controle hipermediados pela cultura do consumo”. Gabor Maté deixa claro que o TDA não é uma patologia; é uma divergência de desenvolvimento. Ele sustenta que sua causa principal não é a cultura hipermediada de nossa época; no entanto, a cultura pode alimentá-la e reforçá-la – e assim o faz.
Fisher qualifica a metáfora do “esquizofrênico” do teórico crítico Fredrick Jameson como típica da cultura pós-moderna dos anos 1980. Jameson descreveu uma cultura na qual somos constantemente bombardeados por imagens aleatórias, uma “série de presentes puros no tempo, desconectados entre si”. Ele escreveu que as pessoas com esquizofrenia encarnavam a fragmentação da identidade que essa experiência do tempo cria: a incapacidade de produzir um senso coerente de si mesmo que conecta passado, presente e futuro. Outros pensadores do final do século 20 tinham suas próprias teorias não ortodoxas sobre a esquizofrenia, notadamente o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Felix Guattari em seu livro de 1972 O Anti-Édipo.
Um trasntorno simbólico
Fisher, professor universitário e filósofo, observou que a indústria cultural havia avançado desde os escritos de Jameson na década de 1980. Fisher escreveu: “Enfrentamos, na sala de aula, uma geração que foi embalada naquela cultura rápida e a-histórica e antimnemônica, uma geração para a qual o tempo sempre veio cortado em microfatias digitais pré-digeridas”. Para Fisher, a pessoa com TDA, com seu enfoque distraído e “memória de trabalho deficiente”, era o símbolo atualizado de nossa era. E isso foi em 2011, muito antes do TikTok e do Instagram Reels.
O que Fisher deixou de mencionar foi que para Deleuze e Guattari, se não para Jameson, a esquizofrenia não era apenas a aflição do capitalismo tardio, mas também seu anjo exterminador. Ao dar origem à esquizofrenia pós-moderna, argumentavam eles, a cultura do capitalismo tardio estava semeando as sementes de sua própria morte. O capitalismo tardio (também conhecido como capitalismo neoliberal) é confuso, caótico, indisciplinado. É o Velho Oeste econômico, onde o dinheiro reina, as finanças são fictícias e todas as barreiras aos seus fluxos são demolidas. Isso cria culturas e subjetividades também confusas, caóticas e indisciplinadas. Mas afinal, o capitalismo precisa de ordem, estabilidade e regras. Precisa do Estado. Precisa das Forças Armadas do Estado, suas leis e suas burocracias. E precisa de cidadãos bons, estáveis e confiáveis que cumpram suas ordens. O caos e a desordem da esquizofrenia ameaçam perturbar todo o sistema.
Para ser honesta, não tenho certeza se é correto usar uma doença mental grave como uma metáfora para nosso mal-estar moderno. No entanto, para teóricos como Deleuze, era importante ver a doença mental como categorias políticas e não como categorias naturais e privadas. Elas são vivenciadas pelos indivíduos, mas são produzidas nas e pelas sociedades. O pessoal é político. O mesmo pode ser dito para diferenças neurológicas como TDA. E, como a esquizofrenia, o TDA também pode ser entendido não apenas como padecimento totêmico de nossa época, mas também como seu Cavalo de Troia.
O TDA contra o relógio
“O TDAH é essencialmente a cegueira do tempo”, diz o principal especialista em TDA, Russell Barkley. Erik não concorda. Não é uma cegueira ao tempo, ele sustenta, mas um esquecimento de uma construção social particular do tempo: o tempo governado pelo relógio.
O capitalismo instituiu uma economia baseada no trabalho assalariado e, com ela, a mercantilização do tempo. O tempo se transformou em dinheiro. Ou, mais precisamente, “o tempo de trabalho dos trabalhadores tornou-se o lucro dos capitalistas”.
Em Hours against the Clock: On the Politics of Laziness [Horas contra o relógio: Sobre a Política da Preguiça], Lola Olufemi explica como o capitalismo captura o tempo, convertendo-o em um recurso finito que perdemos para sempre em nosso trabalho. Aumentar a produtividade, mantra do capitalismo, significa acelerar a produção para que estejamos sempre produzindo mais no mesmo período de tempo. Vemos a tirania capitalista do tempo mais claramente nos armazéns da Amazon, onde cada movimento dos trabalhadores é monitorado por algoritmos e os menos produtivos são em geral demitidos. Vemos isso em granjas onde os trabalhadores são obrigados a usar fraldas porque não têm tempo de ir ao banheiro.
Devido às diferenças na fiação e na química do lobo frontal do cérebro, a pessoa com TDA não experimenta esse tipo de tempo linear. Gabor Maté diz que para aqueles com TDA existem dois estados de tempo: o “aqui e agora” e o “para sempre”. Constantemente recordo a Erik que o tempo passa. Se eu disser a ele que são duas da tarde, ele continuará acreditando que são duas da tarde até que eu diga que duas horas se passaram e, agora, são quatro da tarde. Da mesma forma, ele não percebe que não chegará a tempo para uma reunião até que passe da hora marcada e ele nem tenha saído de casa. É possível ver por que esse tipo de humano é inimigo de um sistema econômico baseado no regime do tempo. Desejo boa sorte ao tentar fazer com que uma pessoa com TDA chegue à escola ou ao trabalho no horário; defina tarefas por um certo período de tempo e depois vá para casa e faça o que for preciso para poder fazer exatamente a mesma coisa amanhã.
TDA e o sono
Porque estamos sempre de olho no relógio, mesmo quando estamos livres. À noite estamos nos preparando para trabalhar amanhã. Nos fins de semana, tentamos esquecer o trabalho enquanto nos certificamos de que nossa rotina de sono não fique tão bagunçada que não consigamos acordar na hora na segunda-feira. Nas férias, se tivermos sorte, podemos relaxar por alguns momentos antes de começar tudo de novo.
Não quero ser frívola, mas sempre considerei o despertador uma violação dos direitos humanos. Para pessoas com TDA, literalmente é uma violação. Elas dormem muito mal. Mas, como muitas de suas coisas, seu sono é “deficiente” devido às pressões de tempo da escola ou do trabalho. O padrão de sono intrínseco de Erik parece ser bifásico. Ele tem uma fase de sono à noite e outra de manhã ou depois do almoço. Isso seria ótimo se o seu trabalho atual não exigisse que ele ficasse acordado das 9h às 17h. Na verdade, as últimas pesquisas sobre o sono sugerem que o sono humano é naturalmente bifásico. É o capitalismo que exige – e depois garante que você não as receba – oito horas seguidas.
Erik é de alto funcionamento. Quando nos conhecemos, ele era analista de risco em um grande banco. Mas ele só suportou a tirania do tempo por certo período. Ao final, um ou dois anos depois, deixaria de fumar e necessitaria recuperar seu tempo e seu sono. Temos o privilégio de poder viver assim, embora nem sempre seja fácil. Milhões de pessoas com TDA, juntamente com bilhões de pessoas sem TDA, nunca escapam da rotina. Mas, quem sabe, se adotássemos coletivamente o descumprimento da ADT com o tempo capitalista, talvez pudéssemos.
Burocracia capitalista
A burocracia pode ser associada a um Estado inchado, mas o termo “kafkiano” é hoje mais apropriado para o hipercapitalismo. Alguma vez você já tentou entrar em contato com o atendimento ao cliente do Airbnb? O falecido David Graeber argumentou que a noção de burocracia como exclusivamente um grande problema do Estado é propaganda. Para ele, governos e empresas são quase indistinguíveis em sua burocracia infernal. Na verdade, as burocracias do Estado e do setor privado estão frequentemente interligadas. Na Holanda, se alguém atrasa o pagamento de quaisquer impostos, os departamentos governamentais contratam cobradores de dívidas privados para que ele seja perseguido. Uma vez em suas garras, é quase impossível se salvar de multas e taxas cada vez maiores. O trauma que Erik sofreu ao ser assediado por esses fiscais não é brincadeira. (Um de seus projetos é criar uma “união nacional de não pagantes”, mas ele ainda não conseguiu isso.)
Há uma coisa com a qual o cérebro com TDA é incompatível: burocracia. Devido, em parte, aos baixos níveis de dopamina, as pessoas com TDA acham praticamente impossível gastar tempo em atividades para as quais não têm motivação interna. Se alguém quer que uma criança com TDA faça sua lição de matemática, deve estruturá-la, por exemplo, como um videogame que fornece uma dose de dopamina toda vez que marca um ponto.
Sejamos realistas, junto com a burocracia direta – que consome uma quantidade exorbitante do nosso tempo e pela qual não somos pagos – grande parte do trabalho remunerado que fazemos também pode ser classificado como burocracia. Não tem significado intrínseco, não agrega valor à sociedade e fazemos isso simplesmente para conseguir dinheiro para nos mantermos vivos. Mais uma vez, as pessoas com TDA não podem se motivar a fazer coisas que não são de importância intrínseca. Podemos nos perguntar por que qualquer um de nós pode fazer isso. Quando alguém reflete sobre isso, quem realmente é que tem um distúrbio?
Seria o TDA um anarquista ?
Isso não quer dizer que as pessoas com TDA são preguiçosas. Muito pelo contrário. Erik é praticamente um workaholic. Como muitas pessoas com TDA, ele é extremamente focado em certas coisas que, em seu caso, incluem fazer filmes e gráficos em 3D, costurar, estudar criptomoedas, tocar violão e fazer jardinagem. Mas não nas coisas que outras pessoas lhe dizem para fazer. Em vez disso, Erik encarna o ser humano comunista ideal de Karl Marx. Marx escreveu que, sob o regime do tempo de trabalho do capitalismo, “todo homem [sic] tem uma esfera particular de atividade exclusiva que é imposta a ele e da qual não pode escapar. Ele é um caçador, um pescador, um pastor ou um crítico, e deve permanecer assim se não quiser perder seu meio de vida”. Mas sob o comunismo, com controle democrático da produção, seríamos livres para desenvolver nossos talentos à vontade. Seria possível “fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado à noite, fazer críticas depois do jantar, como tenho em mente, sem nunca me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico”.
O cérebro com TDA não é construído para o trabalho sem sentido, mas para o pensamento livre e criativo, onde as conexões são ativadas em todas as direções. A mesma fiação que cria caos interno e distração também torna as pessoas com TDA melhores em “pensamento divergente”, “expansão conceitual” e “superação das limitações de conhecimento”. É verdade que muitas vezes o capitalismo acaba sendo digno da falta de compromisso das pessoas co TDA diante das burocracias, como atestam esses agentes impositivos. Mas a pessoa com TDA será aquela que, com maior frequência, sairá prejudicada. Ou, sejamos honestos, a sofrida companheira da pessoa com TDA terminará fazendo a burocracia para ela, especialmente se essa companheira tenha persuasão feminina.
Ainda assim, o grande rechaço do cérebro com TDA ao sequestro do tempo pelo capitalismo através do trabalho assalariado e da burocracia, e sua insistência na criatividade, prazer e autoexpressão, deve ser vista como uma fonte de rebelião crua, alegre e anárquica.
O amor é uma palavra que funciona
Para Gabor Maté, embora a medicação possa ser útil em muitos casos, ela nunca deve ser a primeira ou a única parada obrigatória para tratar o TDA. O TDA não é uma doença. É uma diferença no desenvolvimento neurológico, causada por famílias que estão muito estressadas pelas pressões da vida para dar aos filhos a atenção que necessitam. Pessoas com TDA foram brutalizadas pela sociedade. O mesmo vale para adictos e portadores de doenças crônicas. A boa notícia é que você pode se curar em qualquer fase da vida. O que eles precisam para fazer isso são lugares onde sejam aceitos e tenham espaço para perseguir suas paixões, conectarem-se com seus sentimentos e nutrir sua autoestima. Em outras palavras, o que eles precisam é o que todos precisam.
Sempre disse que o amor não é apenas um sentimento, mas um verbo, uma ação. Aparentemente eu não sou a única que pensa isso. O psiquiatra estadunidense Scott Peck define o amor como ação, como “a vontade de se estender para nutrir o crescimento espiritual e psicológico de outra pessoa, ou o seu próprio”. Maté termina seu livro com estas palavras: “Se pudermos amar ativamente, não haverá deficit de atenção nem transtorno”.
Devemos isso uns aos outros para criar esses espaços de amor ativo e de cura. Ao longo do caminho, todos nós podemos aprender com a rejeição do cérebro com TDA ao tempo de trabalho e à burocracia capitalista. Todos nós podemos abraçar seu pensamento lateral desafiadoramente criativo. Todos nós podemos abraçar a desordem que nos libertará.
Texto de Laura Basu, no OpenDemocracy | publicado com tradução de Rôney Rodrigues na Revista Outras Palavras
Laura Basau é membro do Departamento de Mídia e Comunicações da Goldsmiths da Universidade de Londres e do Institute for Cultural Research da Universidade Utrecht. É autora de Media Amnesia (Pluto, 2018) e editora de The Media and Austerity (Routledge, 2018).
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