Rua como espaço de resistência
Venho das ruas, atuando em equipe volante de base territorial, que faz dos escombros da cidade lugar de pertencimento, potência e cuidado, entendendo a rua como espaço de resistência, de corpos ingovernáveis, crianças, adolescentes batizados de “cracudos”, “menores”, “drogados” que desafiam a norma, assim como o “moleque peralta” que se aproxima e senta ao lado enquanto Derrida ouve Gira Mundo, meninos e meninas como aquele menino que bebe e fuma para quebrar o feitiço, como relatado por Fábio Borges-Rosário no texto nas Encruzilhadas com Derrida:
“Reforçou ainda que quando bebe e fuma intenciona lembrar aos que lhe procuram que muitas crianças ainda são vítimas de inescrupulosos que se aproveitam de sua fragilidade para lhes arrebatar a esperança e o futuro. Mas que ele bebe e fuma para quebrar feitiço, para dirimir querelas e anunciar um mundo onde não haverá crianças abandonadas à própria sorte.”
A rua tem ginga própria, não tem saber, nem técnica suficientes, desafia a clínica, os serviços de saúde, assistência e atenção psicossocial, tem ruínas de muros, ocupações, copos de “guaracrack” que viram cachimbos, tem jovens mães que perderam seus filhos, tem sexo, economia, moeda própria.
A rua não cabe em nenhum ideal, ela transborda. Faz do centro periferia, basta uma rápida e atenta observação nos Centros das grandes Cidades. A rua enquanto território pode ser encruzilhadas,
“pontos de encontro, lugares de agenciamentos possíveis…. lugares de chegada e, ao mesmo tempo, pontos de partida. Por meio das encruzilhadas podemos visualizar uma espécie de trama de caminhos, mas no ponto em que todos os caminhos se cruzam, estranhamente, as encruzilhadas não representam caminho algum.”
E como ressaltado no texto “O Maraca era nosso: o futebol em tempos de arenização”, existem dois modos de se encarar a encruzilhada, uma forma baseada na lógica calculista, buscando previsão e outra sendo conduzido pela experiência das encruzilhadas e experimento o desespero da indecisão, e assim, como descrito no texto se permitir despir de certezas, passando por transformações.
O trabalho é encruzilhada
Nas ruas com crianças, adolescentes e jovens o trabalho é encruzilhada, e quando a resposta vem calculada é preciso desconfiar, são sempre cálculos violentos de segurança pública, de gestão e exclusão. A experimentação da encruzilhada com o encontro do desespero, da não resposta, é incomum, exige suspensão de fórmulas e modelos, e principalmente suportar a tensão produzida pelo não saber.
Nesse fazer que questiona o que vem pronto, borrando limites entre periferia e centro, que se desenhou a pesquisa que vem me conduzindo, um percurso da rua para a gestão e da gestão para a rua, apagando as fronteiras entre “nível central e ponta”, como são chamados a gestão e os serviços responsáveis pelo atendimento direto à população.
Isso que vem da borda, posição transgressora que subverte qualquer governo com astúcia, construindo outras estratégias de existência, adolescentes e jovens que compartilham as ruas, comidas, histórias, e se denominam “Loucos da mata”, vivem em um terreno cercado de escombros de uma antiga construção, entre pedras, mato e lixo.
Esses “meninos” e “meninas” nos ensinam sobre curativos, economia, relações de afeto, respeitam pactuações e não barganham vontades, só fazem o que de fato querem. Debocham das decisões e migalhas públicas negociando o kit de lanche (achocolatado e biscoito), escolhendo o que comer, o que fazer e o que usar. Carregam a sabedoria das ruas, “potência inventiva de novas espacialidades relacionais.”
Sobre o nome escolhido pelos adolescentes e jovens “Loucos da mata”, vale a lembrança do que é destacado por Rafael Haddock-Lobo no texto “Por uma filosofia das matas”, quando cita Lydia Cabrera: “Tudo se encontra na mata”, “a vida saiu da mata”, “somos filhos da mata”.
Já o que chega do “nível central” vem pleno de um desconhecimento que se pensa sabido, com seus ordenamentos arbitrários. O centro carrega a arbitrariedade de achar que decide o que está na periferia, gestores que de tanta sapiência são “espertos ao contrário”.
Segunda encruzilhada – O centro só é centro pelas bordas
A bioética carrega a encruzilhada sem contar. Talvez não conte por ser branca e europeia demais, talvez não conte por não ser a bioética que carrega encruzilhada e sim encruzilhada que carrega bioética.
Quem carrega quem não é o mais importante. O essencial é reconhecer que a bioética é carregada de decisões e muitas vezes de indecibilidades.
A encruzilhada marca bioética, sendo encruzilhada
“lugar onde dois caminhos se cruzam num processo ou situação é o momento em que mais de uma alternativa se oferece. Momento que exige a tomada de decisão ponto encruzilhada e a morada da aporia.”
Considerando aporia como um paradoxo decisivo é possível considerar a justiça?
Essa tem sido a encruzilhada que me encontro no percurso de doutorado, pensando na imagem do soberano, como figura arquetípica que serve de guia, o senhor da decisão sobre a vida, se articula com a hipótese da pesquisa, que partindo do reconhecimento da insuficiência da institucionalidade, e da falta como constituinte dos processos de gestão e execução das políticas públicas, mais especificamente de saúde, traz como conjecturas:
a) Que em situação de escassez de recursos há um repassamento dos processos de tomada de decisão do nível central para os profissionais que atendem diretamente a população.
Seriam esses profissionais parte da periferia?
b) Que os profissionais que assumem os processos de tomada de decisão evitados pela gestão muitas vezes se tornam soberanos operadores de uma necropolítica.
Ou aceitarem o bastão de decisão retornam ao centro?
c) Que no encontro com ordenamentos absurdos e transferências decisórias não existe somente o cadáver obediente, mas há também o transgressor.
Como pode ouvir Derrida no encontro com Dona Maria de Tranca Rua e com o Tranca Rua de Dona Maria:
”o território de nascimento, os lugares de moradia ou o local de sepultamento não silenciam a voz dos que lutam por justiça.”
Neste ponto, as reflexões desenvolvidas no artigo “Vidas e Saberes periféricos como Potências Transgressoras” são fundamentais, considerando o que tem se evidenciado é que não há decisão central. Que há uma transferência de indecisão, uma escassez de recursos, uma administração miserável na miséria, uma transferência responsiva daquilo que não se pode decidir. Não há um corte definido pelo limite do centro: a periferia é ser da diferença.”
E por fim, retornando a encruzilhada carregando a bioética, o estudo desenvolvido vem indicando que o campo da bioética também vem operando numa lógica de transferência responsiva ao situar grande parte dos debates, reflexões, e produções sobre tomada de decisão no campo da relação clínica, entre sujeitos, e instituições.
* Paula Kwamme Latgé (@paulalatge ) é integrante do Coletivo Pluriverso, Psicóloga, mestre em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva – UFF, e doutoranda em bioética e saúde coletiva pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva. Atua como psicóloga da Equipe de Referência para Ações de Atenção ao uso de Álcool e outras Drogas – ERIJAD e na Associação de Mídia Comunitária – BEM TV.
** Foto de capa, colagem de Claudio Barria @kangen-consultoria sobre imagens de repositórios públicos.