Chapada do Araripe é um livro aberto sobre a história da terra. Guarda em suas profundas entranhas as marcas geológicas da presença das águas através dos registros fósseis de milhões de anos gravados no calcário laminado. Eras e períodos geológicos da terra talharam nas rochas os vestígios dos seres que habitavam o vale da verde chapada nos tempos do período cretáceo, datados, em sua maioria, desse período.
A água é presente nos percursos feitos pelos Kariri. Os seus abrigos – lugares onde estão os registros rupestres deixados por esse povo, datados de 3.100 anos antes do presente – estão localizados próximos aos locais de água, em que as nascentes brotam pelos pés de serra da Chapada do Araripe.
Dos Kariri, o povo do presente – habitantes desse vale, que é a Região do Cariri Cearense – herdou uma identidade cultural singular, que enfeita as ruas de sons, cores e danças, um verdadeiro caldeirão de miscigenação de culturas. A Casa Grande de Nova Olinda “simboliza um marco entre o passado pré-histórico da Chapada do Araripe e a tardia história colonial do interior do nordeste brasileiro, que só chegou ao mais profundo sertão do Cariri no início do século XVIII, percorrendo o Caminho das Boiadas”.
A chegada do ciclo do couro no Cariri percorreu o caminho das águas então percorrido pelos Kariri. Dominados, os índios passam a ser vaqueiros, os cuidadores dos gados das grandes fazendas, e o couro do boi passa a ser utilizado para fabricação da indumentária do vaqueiro na lida com gado sertão adentro.
Arqueologia e Cultura
Hoje, a Casa Grande de Fazenda de Nova Olinda abriga a Fundação Casa Grande Memorial do Homem Kariri. Um complexo cultural, localizado bem no centro da cidade de Nova Olinda, que abriga um museu de mitologia e arqueologia, bibliotecas especializadas, rádio comunitária, estúdio de produção de vídeo, cineclube, galeria de arte e um teatro, espaços geridos por crianças e jovens da cidade de Nova Olinda, que fazem dele um lugar de produção e fruição de arte.
Nela, a memória do povo Kariri se mantém viva, com um trabalho pautado na Arqueologia Social Inclusiva, na qual a arqueologia se tornou um meio viável para o nascimento do projeto social que fez com a comunidade despertasse para esse espaço, construindo unida um complexo cultural, acessando conteúdos nos seus laboratórios, aprendendo e se capacitando sobre gestão cultural, comunicação social, turismo comunitário e as ciências do patrimônio, fazendo dessas áreas de formação oportunidades de profissionalização e de manutenção das suas vidas no interior do nordeste brasileiro.
“A Casa Grande é um beija-flor que suga o néctar da Chapada do Araripe e o espalha sobre o seu vale”, afirma Alemberg Quindins, palavras essas que se comprovam pelos projetos de incentivo ao desenvolvimento das pessoas e da região que a instituição já promoveu e vem realizando.
Os projetos
O projeto de “Turismo Comunitário” fez florescer nas casas das famílias das crianças e jovens do projeto de pousadas domiciliares que hospeda turistas de todas as partes do Brasil e do mundo, os quais desejam conhecer a Fundação, gerando, assim, renda complementar para as famílias participantes. Mestre Zé Artur, proprietário de uma área ampla de agrofloresta na zona rural de Nova Olinda, possui, na sua morada, uma pousada domiciliar e faz do seu terreiro uma escola, ensina aos que chegam como fazer dar certo experiências de agrofloresta na caatinga e como sazonalidades das chuvas se apresentam como um ensino da natureza para que o sertanejo aprenda a captar água em grandes reservatórios, não lhe faltando em nenhum só dia do ano o que beber e o que comer.
O projeto “Museus Orgânicos”, nasce através da expertise de musealização do Memorial do Homem Kariri e faz nascer museus vivos nas casas e oficinas dos Mestres da Cultura Popular do Cariri, para além do município de Nova Olinda. O Museu Orgânico “traz na sua essência a valorização das histórias de vida dos mestres brincantes, de suas artes e ofícios” e, ao longo dos anos, com mais de dez experiências implantadas, vem se consolidando como “uma rede sociocultural composta de lugares de memórias vivas: fomentando a troca de experiências, circulando conteúdo, fortalecendo vínculos comunitários, intercambiando conhecimentos e oportunidades de geração de renda às famílias e comunidade, tendo como matriz a arquitetura do afeto e a ativação de territórios criativos”.
Os museus habitam diferentes lugares e oportunizam diversas vivências. Está aí um dos porquês de sua organicidade, seja por revelar uma área de preservação da caatinga, tendo a observação de aves como o seu principal atrativo, tal é o caso do Museu Casa dos Pássaros do Sertão em Potengi, Ceará; seja por mostrar como a casa de um mestre de reisado de couro utiliza as árvores da caatinga para produzir as máscaras utilizadas pelos brincantes e o corpo que sustenta os entremeios que divertem a comunidade rural em Dias de Reis, como no Museu Casa do Mestre Antônio Luiz, em Potengi, Ceará; seja, ainda, como as “artesanices” de Mestra Corrinha, que une o barro, a água e suas habilidosas mãos para moldar arte e utensílios, que ganham vida no Museu Oficina de Corrinha Mão na Massa, em Missão Velha, Ceará.
Um patrimônio mundial
São inúmeros os elementos que fazem da Chapada do Araripe um patrimônio singular; logo, outro projeto que a Fundação Casa Grande vem desenvolvendo e agregando parceiros de diferentes instâncias busca justificar os atributos que consolidam a Chapada do Araripe como patrimônio mundial. Este, por sua vez, extrapola as barreiras geográficas do Cariri, do Ceará e do Brasil. Pretende inundar o mundo com a notícia de uma região autêntica e excepcional, assim como o mar já a inundou para fossilizar no solo deste chão a memória da terra.
Os projetos e processos desencadeados no seio da Fundação Casa Grande, que despertam para o desenvolvimento regional sustentável, através do turismo, da museologia e do patrimônio, fazem-me rememorar os caminhos das águas percorridos pelos Kariri, os quais ganham destaque nas paredes e salas do Memorial do Homem Kariri, onde se diz que “Contam nossos avós que os nossos bisavós foram pegos a dente de cachorro e que quando a Casa Grande chegou, uns se enfurnaram nas locas onde viveram nossos tataravós nos “taiados” da serra e outros ficaram de morador do povo da Casa Grande, na labuta de vaqueiro. Mas nossos tataravós contaram para os nossos bisavós, que contaram para os nossos avós, que, na origem, nós surgimos de um reinado na beira de uma bonita lagoa e que um dia o reinado se encantou, deixando o retrato nas pedras e que, em algum lugar no caminho das águas, existe um portal que por ele um dia vem se desencantar”.
A mitologia nos faz perceber como a Fundação Casa Grande é, dentro do caminho das águas que brotam e percorrem a Chapada do Araripe, esse portal encantado.
Fabiana Pereira Barbosa é produtora cultural e mestranda na Pós-Graduação em Artes, Patrimônio e Museologia (Universidade Federal do Piauí e Universidade Federal do Delta do Parnaíba). Especialista em Arqueologia Social Inclusiva pela Universidade Regional do Cariri.
(*) Essa matéria foi publicada na revista Amarello onde foi garimpada pela nossa curadoria coletiva. Nós apenas inserimos os títulos e incluímos algumas imagens.