Não vamos mentir, são tempos difíceis…
Seguimos adiante? Seguimos! Com a força e a paciência ancestral de quem viu a maior parte do seu mundo ser depredado pela lógica torpe, míope e mesquinha do capital, que há mais de 500 anos se ergue como vetor de um modelo de sociedade predatório, extrativista, patriarcal, cultural e politicamente eurocêntrico e existencialmente lucro-centrado. E que insiste em definir a si próprio como único modelo de civilização viável, embora sua insustentabilidade não seja já segredo para ninguém que tenha a coragem de enxergar.
Porém, é mais fácil culpar a “natureza” – essa mesma que é apresentada como algo alheio a nós, como se dela não fizéssemos parte -, na ilusão de ser possível prescindirmos desse todo para existirmos. Mas, como nos disse certa vez o querido Enrique Dussel, “a vida tende à vida”, o que se opõe a ela é essa lógica lucrocêntrica.
Nossa edição do Equinócio de primavera quase não saiu, mas teimou e aqui está, crescida de verão. Mas o atraso deixa este editorial, que era para ser de primavera, carregado de um quê de retrospectiva anual. E foi um ano de mudanças, perdas, novos aprendizados, encontros e esperanças. Então, continuamos r-existindo e afirmando a vida, em meio a dantescas disputas dos donos do mundo pelos frutos da terra, vistos apenas como recursos energéticos, que colocam nações e seus exércitos em guerras fratricidas. Seguimos nos reinventando, em meio aos últimos estertores do colonialismo, que deflagra suas ocupações e genocídios, que destroem a vida de povos e culturas, matam crianças, memórias, corpos, subjetividades, saberes…
E nesse mesmo tempo em que vimos as radicais ideologias da ultradireita voltarem com renovada força de convencimento ante à crise, tivemos de lamentar também a partida de gente amada que tanto nos alimentou e alimenta: Enrique Dussel, Carlos Walter Porto-Gonçalves, Jujuba a querida palhaça Julieta Hernandez… Parece que todas e todos que partiram ultimamente, falam-nos, em uníssono, as palavras do poeta Refaat Alareer, assassinado em dezembro, por um bombardeio em Gaza, “Se eu devo morrer, que traga esperança, que seja um conto”…
Se eu devo morrer, você deve viver para contar minha história vender minhas coisas comprar um pedaço de pano e algumas cordas, (deixe o branco com uma cauda longa) para que uma criança, em algum lugar de Gaza enquanto olha o céu nos olhos aguardando seu pai que partiu em chamas— e não se despedir de ninguém nem mesmo para sua carne nem mesmo para si mesmo - vê a pipa, minha pipa que você fez, voando lá em cima e pensa por um momento que um anjo está lá trazendo de volta o amor Se eu devo morrer deixe trazer esperança deixe ser um conto __________________ If I must die, you must live to tell my story to sell my things to buy a piece of cloth and some strings, (make it white with a long tail) so that a child, somewhere in Gaza while looking heaven in the eye awaiting his dad who left in a blaze— and bid no one farewell not even to his flesh not even to himself— sees the kite, my kite you made, flying up above and thinks for a moment an angel is there bringing back love If I must die let it bring hope let it be a tale Refaat Alareer
Por isso, e graças a todas elas e todos eles, seguimos e seguiremos.
A nossa curadoria – sempre coletiva e colaborativa – nos convida a perambular pela potência do que insiste em tender à vida, um coletivo que transformou o telhado da sua sede em espaço eco produtivo; um retorno com olhar aguçado à realidade dos coletivos catadores de lixo em Gramacho, após mais de uma década de ter virado centro de um documentário sobre o trabalho do artista Vik Muniz, indicado ao Oscar; um olhar crítico sobre conceitos como a educação para a cidadania e sobre a própria escola, a partir da cultura da infância em busca de uma educação ancorada no brincar como resistência à lógica produtiva das grandes metrópoles; uma busca por caminhos alternativos para tornar a inteligência artificial mais democrática e sustentável; um papo íntimo entre mulheres (com Amelia Gonzalez e Karla Concá) sobre o que é ser mulher palhaça num mundo patriarcal; uma fresta que se abre para aprendermos com o pensamento andino-amazônico e o sentido do Sumak Kawsay ou Bem-Viver; a certeza de como jornalistas investigativos do mundo todo continuam o trabalho de Bruno Pereira e Dom Phillips, revelando crimes ambientais na Amazônia; uma reflexão sobre a capoeira contemporânea a partir das suas origens; um mergulho na história apagada de Beatriz Nascimento, historiadora, ativista preta e poeta; uma reflexão sobre como, sob valores afrocivilizatórios e de apoio mútuo, o impacto dos coletivos liderados por mulheres pretas no Brasil estão desafiando as desigualdades. E ainda mais um capítulo dos Caminhos da economia solidária.
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(*) Educador, músico e pesquisador chileno radicado no Brasil desde 1995. Doutor em Educação pela UFF, é sócio-fundador da Pluriverso Coletivo, onde coordena o Núcleo de Pesquisa experimental em Arte e Ciências Humanas (NuPACh), idealiza a plataforma de Educonexão Pluriverso Diálogo de saberes e é Editor chefe da Revista Pluriverso.