A boneca Abayomi
Muito provavelmente, você conhece ou já ouviu falar da boneca Abayomi. As bonecas pretas sem cola ou costura têm se espalhado pelo Brasil com uma velocidade surpreendente desde seu surgimento. Apesar de ser um trabalho artesanal que nunca recebeu grande visibilidade na mídia ou campanhas publicitárias, sua popularidade cresceu rapidamente. Assim, aos poucos, o trabalho de formiguinha das oficinas de boneca Abayomi foi também se multiplicando, ao ponto de ser hoje difícil quantificar as artesãs que as produzem. Hoje, a boneca é sem dúvida mais um símbolo da cultura negra brasileira.
Possivelmente, se você ouviu falar da boneca Abayomi, já ouviu também alguma bela e/ou dramática história sobre sua origem. É que, de uns tempos para cá, junto ao crescimento da fama da pequena boneca preta, foi se espalhando, com enorme facilidade, uma versão que vincula o surgimento da boneca preta aos navios negreiros. Uma narrativa potente, com forte apelo para a luta e a cultura negras, porém inverídica.
A lenda
Segundo a lenda, a boneca Abayomi teria nascido com o tráfego escravista, nos porões dos navios negreiros, onde as mães teriam pego retalhos de pano buscando dar conforto e afeto a seus filhos, no momento mais terrível da diáspora. Trata-se de uma história mítica, sensível e bela, cheia de apelos a uma cultura de sofrimento que, é claro, gera imediata empatia nos não-racistas mais desavisados. A lenda, que logo caiu no gosto popular, foi até parar na grande mídia, com novos elementos dramáticos.
O problema é que essa história não é real.
Para alguns historiadores, como Luciane Adriano, é necessário contestar a versão distorcida da história da Abayomi, pois ela apresenta uma perspectiva romântica da diáspora africana que busca suavizar os eventos bárbaros ocorridos.
“Não temos nenhum registro documentado das mães levarem seus filhos [nos navios negreiros]. Os traficantes de escravos geralmente não traziam crianças pequenas porque elas não tinham ‘valor’ nenhum. (…) As mulheres eram separadas de suas famílias. E algumas das crianças menores que entravam nos navios eram jogadas no mar, o que torna a diáspora africana ainda mais trágica”
Alguns poderão pensar que um mito de origem não precisa se sustentar em dados históricos, que sua função social é outra. Mas o fato, mais do que provado já, é que esse “mito” em particular, que vem se tornando a narrativa mais conhecida, é uma invenção extremamente recente que mal poderia ser considerada com um mito no sentido estudado pela filosofia ou pelas ciencias humanas que se debruçam sobre as narrativas ancestrais.
O que queremos destacar é que o principal efeito dessa narrativa inventada é o apagamento de um capítulo importante da luta das mulheres negras no Brasil. Principalmente a história de uma mulher negra, artista, educadora, artesã, que está viva e continua criando e lutando junto ao seu coletivo. Afinal, uma expressão da arte de um povo, que carrega consigo toda uma trajetória de força, luta e criatividade, acaba sendo transformada em uma narrativa de sofrimento e dor onde o poder é do opressor e não de quem cria. Em tempo, uma prática carregada de atualidade política e potência criativa de r-existência, é lançada a um pasado folclórico, descontextualizado, que por sua vez esconde o horror da diáspora africana.
A origem da boneca Abayomi
Curiosamente, a criação da boneca Abayomi – e sua história negada pelo mito dos navios negreiros – está intimamente ligada ao movimento negro, especificamente à luta da mulher negra e, talvez, acima de tudo, à enorme potência de uma cultura que mais do que apenas resistir, r-existe, se reinventa.
A história da sua origem, na década de 80 do século recém passado, nos traz também uma urgente e necessária reflexão sobre a questão da autoria na arte popular, atravessada pelo olhar colonizador que a nega ou busca atribuir às criações uma sorte de importação de “fora”, da Europa ou mesmo da África.
O fato (verificado) é que a boneca Abayomi (o conceito, sua técnica e inclusive seu nome) é de autoria de Waldilena “Lena” Serra Martins, uma artesã maranhense que migrou, ainda criança, para o Rio de Janeiro.
O contexto é o das lutas sociais e a agitação político-cultural da redemocratização, na década de 1980. Na época, vivia-se a expansão dos Centros Integrados de Educação Pública (Ciep). Lena coordenava a animação cultural no Ciep Luiz Carlos Prestes, na Cidade de Deus (sim, aquela do filme), no Rio de Janeiro.
Foi em 1987 que a artesã desenvolveu a técnica de criação de bonecas feitas de retalhos de pano, sem uso de cola nem costura. Convencida da importância de fazer arte com o que a vida nos entrega, Lena dava um novo destino até então era tido como lixo.
Um entrelaço de trajetórias coletivas
Na época, Lena também participava do Movimento de Mulheres Negras. A boneca Abayomi foi criada um ano antes do centenário da abolição da escravidão. Um período de intensas discussões sobre a redemocratização do país, que fortaleceu ainda mais o envolvimento de Lena com a produção das abayomis.
A partir do contato com a boneca, surgiu a ideia de fundar a Coop Abayomi, uma cooperativa de artesãs negras organizadas como “Artesãs Livres Associadas”. Essa cooperativa se tornou um espaço de referência naquela época.
A narrativa romantizada sobre as abayomis, além de inverídica, é injusta, pois oculta e nega a autoria de um símbolo cultural à sua criadora ainda viva.
Recentemente, o Coletivo Abayomi Boneca Brasileira lançou nas redes um manifesto denunciando o apagamento sofrido por Lena Martins como artesã, negra e autora da boneca Abayomi.
Essa matéria é a nossa resposta ao chamado desse manifesto. Isso porque nós, do Coletivo Pluriverso, conhecemos a boneca Abayomi, conhecemos a Lena Martins e o movimento do qual faz parte. Assim, fazemos questão de partilhar o carinho e a enorme admiração pelo trabalho que realiza e pela sua potente contribuição para a cultura negra brasileira.
Leia abaixo na íntegra.
Manifesto Abayomi
A boneca Abayomi, importante símbolo de resistência negra na cultura brasileira, foi criada pela artesã maranhense Lena Martins no final da década de 1980, quando se discutia a marcha pela farsa de 100 anos da abolição e o movimento das mulheres negras passava por um intenso período de produção de conhecimento e crescente visibilidade.
Lena, radicada no Rio de Janeiro e participante deste movimento, era animadora cultural do CIEP Luiz Carlos Prestes, na Cidade de Deus, quando em 1987, criou a boneca preta feita com retalhos de pano, sem cola e sem costura, que foi batizada um tempo depois por Ana Gomes, que na época estava grávida.
Ana contou que se a criança fosse menino se chamaria Abebe Bikila e se fosse menina se chamaria Abayomi. Como nasceu menino, o nome enfim chegou para a boneca com a explicação de seu significado: meu presente. No início da década de 90, com a formação da Cooperativa Abayomi, composta por mulheres artistas e educadoras, a boneca (e toda a carga histórico social que gestou sua criação) começa então a ser difundida com oficinas e vivências realizadas em diversas partes do Brasil.
Mas você já deve ter ouvido uma história bem diferente sobre a boneca, não é? Isso porque ainda antes da virada do milênio começam a surgir diferentes versões de um mito de origem das bonecas Abayomi, como se fossem feitas em navios negreiros por mulheres escravizadas para suas crianças.
O que não encontra sustentação em nenhuma pesquisa consistente realizada no Brasil ou em países africanos por historiadores, antropólogos, sociólogos, folcloristas, nem mesmo em documentos da época ou relatos de cronistas do período da escravidão. Estas narrativas que não reconhecem a artesã brasileira como criadora da Abayomi estão inseridas no contexto da pós verdade e das “fake news”.
Elas tocam as pessoas por seu aspecto sentimentalista sobre o terrível processo histórico do tráfico negreiro, abrem mão do fato social do tempo presente e distorcem importantes processos de ressignificação dos nossos traumas sociais. Como diz Lena Martins, “A boneca Abayomi nasceu livre”.
Tais ideias falsas reforçam o ideal colonial de apagar as autorias do povo negro, apagar nossas resistências, criações e reflexões, nos colocar umas contra as outras. Uma mulher que desenvolve este artesanato genuinamente brasileiro, uma criação tão contundente e eficaz capaz de ganhar o país inteiro, é revolucionário!
Deve ser dançado, cantado, comemorado por toda a comunidade e não, como vem sendo feito sistematicamente, apagado e silenciado. O projeto do racismo tem muitas faces e uma delas é fazer com que o reproduzamos, muitas vezes sem nos dar conta.
A união e a mobilização antirracista são os instrumentos que temos a nosso alcance.
Assim, nós que fizemos parte ou que testemunhamos seu nascimento, afirmamos que as bonecas Abayomi são uma criação da artesã Lena Martins, integrada à cultura popular contemporânea e brasileira, por identificação e reconhecimento de sua força imagética e simbólica.
Convocamos todas as pessoas que conhecem a boneca Abayomi a se juntarem a este movimento, divulgando em suas redes sociais este manifesto, depoimentos, imagens, vídeos, teses e artigos acadêmicos, documentários e entrevistas com Lena… passem a palavra!
COLETIVO ABAYOMI BONECA BRASILEIRA
Esta matéria foi produzida pelos editores da Revista Pluriverso Claudio Barría Mancilla e Simone Machado.
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