Hoje mais do que nunca, sujeitos, coletivos e organizações e suas redes enfrentam o desafio de criar novas estratégias de sustentabilidade. Do mesmo modo, precisamos reinventar o modo de construir redes de produção de sentido para nossas ações, processos de formação e ampliação do impacto das ações. De um modo ou outro, essa demanda passa pela criação de espaços que propiciem novos diálogos de saberes, para além da lógica do engajamento superficial promovida pelas (mal chamadas) redes sociais, que nos transformam em espectadores passivos, enquanto reproduzem a lógica do palestrante ou do espetáculo com baixa interação. Como chegamos neste ponto? O que podemos fazer para nos reinventarmos sem jogar fora a potência que ainda trazem consigo as novas tecnologias de informação e comunicação?
A crise e as ausências
Vivemos uma profunda crise civilizatória. Não uma crise econômica ou política, mas uma crise dos paradigmas que alicerçam a sociedade contemporânea à escala global. Os efeitos da lógica predatória implícita no modo de produção e reprodução da vida no sistema-mundo moderno tem gerado profundas distorções que afetam a diversidade biocultural, as relações humanas e a própria sustentabilidade da vida na terra. Trata-se também de uma crise de representações, de legitimação de saberes e de diálogo intercultural. Agora, com a pandemia mundial, esta crise ficou ainda mais evidente e profunda, exigindo-nos reinvenções estruturais.
Embora esforços globais para reverter o quadro, como a Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), existe uma enorme dificuldade na produção de conhecimento legitimado para a mudança. Parte da questão foi identificada pelo que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos em seu artigo Para uma Sociologia das ausências e uma sociologia das emergências, chamou de ‘desperdício da experiência’. Isto é, o entendimento de que “a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante”, e que o enorme desperdício dessa riqueza social leva à ideia de que não há alternativa. O que fica oculto por trás da monocultura da razão moderno-colonial que organiza o sistema-mundo, é esse pluriverso de cosmovisões, de modos de organizar a vida, de saberes com potência civilizatória que carregam os coletivos, grupos, povos e classes sociais na subalternidade.
Essa Razão indolente, criticada pelo autor português, é uma herança do próprio desenvolvimento da racionalidade científica clássica moderna e seu viés de colonialidade. Embora sua fundamental contribuição, a mesma foi afastando-se da vida cotidiana e da produção de saberes de matrizes que não seguissem os seus padrões de racionalidade. Muito do mais rico da nossa experiência tem se perdido nesse processo. Aprendemos a desprezar os saberes dos povos originários, do cotidiano das classes populares, das culturas da infância, da chamada Cultura Viva Comunitária, dos movimentos sociais, dos coletivos de arte, etc.
Novos antigos sujetos, o pluriverso
No atual momento histórico, são justamente estes os mais afetados e, ao mesmo tempo, os portadores de uma enorme potência civilizatória: povos originários, remanescentes de quilombos, comunidades das classes populares, organizações de base comunitária, movimentos sociais, coletivos urbanos e rurais, mestres populares, brincantes ou pequenos empreendimentos, além de artistas e núcleos de pesquisa.
Existem centenas de milhares desses sujeitos espalhados pelo Brasil e pela nossa América nos mais diversos territórios, sempre engajados de forma visceral com os cuidados da terra, das infâncias, da memória, da produção estética etc. São as suas práticas e os saberes que delas se desprendem, que alimentam as mais diversas áreas: educação, arte e cultura popular, cultura da infância, meio ambiente, agroecologia, promoção e garantia de direitos.
Hoje, mais do que nunca, eles precisam de espaços para compartilhar fazeres, saberes e bases para o desenvolvimento sustentável de suas ações. Estes sujeitos, organizações, coletivos e redes já vinham sofrendo com a falta de visibilidade, dificuldade em ter seus saberes legitimados. Agora, além de todos os efeitos desta longa pandemia, vêm-se afetados pela dificuldade no uso de novas tecnologias e pela falta de possibilidades concretas de implementarem novas estratégias de sustentabilidade. A atomização, a fragmentariedade e a precariedade constituem problemas sérios que vêm se agravando no atual contexto.
A sinuca de bico das redes sociais e a internet além delas
Com o advento da pandemia global do novo coronavírus a princípios de 2020 fomos lançados, de um dia para outro, ao mundo digital. Este se apresentava nos primeiros dias da pandemia como uma nova totalidade, espaço incontornável de mediação das relações humanas. Muitos se viram forçados a lançar mão das ferramentas disponíveis, sem entenderem muito bem como elas operam e mesmo qual a função de cada uma delas, ficando à mercê da lógica muitas das vezes perversa e pouco transparente das redes sociais.
Não precisamos entrar nas profundezas um tanto assustadoras sobre a questão das redes sociais e toda a lógica do vale do silício. Mas cabe sim sinalizar que ela vem sendo denunciada por estudos como os da Dra Shoshana Zuboff e o que ela chama de capitalismo de vigilância, ou visibilizada por documentários como O dilema das redes, ou Privacidade hackeada. O fato é que a pandemia nos obrigou a definir estratégias que levaram muitos a ter que juntar, por exemplo, aplicativos de mensagens (como o Whatsapp – com toda a poluição e distrações que vem junto), Zoom ou Google meet, GDrive ou outras nuvens, e-mails, redes sociais e sites de inscrição em eventos, para dar uma única aula, um curso ou realizar um seminário ou encontro. Os problemas práticos e sociopolíticos são inúmeros, fora o fato dessa coleção de plataformas e aplicativos serem quase todas elas de apenas duas megacorporações globais.
Além dos problemas de distração e segurança implícitos (como o risco cada vez mais comum de invasões da sala de reunião online, por exemplo), nenhuma dessas ferramentas fornece um ambiente propício, nem integrado. E no final das contas, após realizado seu curso ou evento, você não fica com nenhum espaço de interação contínua com a sua comunidade em meio digital. O alcance do que você publicar em diante continuará a ser definido pelas corporações com base na programação dos seus algoritmos. O fato é que as redes sociais não são apenas ferramentas. Elas não nos ajudam a construir estratégias de comunicação e mobilização eficazes, a não ser a um preço muito alto.
Por sua vez, na dinâmica criada pela recente massificação do acesso à tecnologia do streaming, muitos passaram a confundir uma aula ou um seminário com uma ‘live’ no Youtube ou no Instagram, acelerando de forma exponencial os processos de espetacularização da vida, em especial da reflexão e dos processos de ensino- aprendizagem.
No paradoxo da nossa era, justo quando temos mais possibilidades tecnológicas do que nunca antes de interagirmos de forma ativa, horizontal, colaborativa e democrática, a escuta, a construção dialógica, a partilha da experiência como base para construção e partilha do saber, começam a recuar. Nesse mesmo movimento assistimos a uma quantidade incomensurável de informações subordinadas a lógicas de controle e exponibilidade que fariam parecer ingênua a noção de fascistização da arte e da vida, denunciada por Walter Benjamin na década de 1940.
O desafio e a oportunidade: designs para o pluriverso
O virtual e o atual se embrenharam, o real se amplia, mas no mesmo movimento corre o risco de uma atrofia subserviente à vigilância global corporativa para além do nosso olhar.
Neste mesmo cenário, entretanto, a vida como sempre se mostra cheia de frestas e porosidades que apontam novas ancestrais potências, leituras e usos inesperados, entrelaçando novas insurgências carregadas de possibilidades. É o virtual como potência, vir-a-ser carregado de esperança, em contraposição ao virtual imitação sintética da vida programada. O fazer dos subalternos, dos comuns, que no seu cotidiano operam no que o sociólogo boliviano Luis Tapia chamou de subsolo político, continua r-existindo e produzindo beleza insubordinada.
Esse conjunto de sujeitos – individuais ou coletivos – de que vínhamos falando, constitui toda uma constelação de redes de redes que carrega consigo uma enorme potência civilizatória cuja rica experiência e diversidade continua a ser desperdiçada. É preciso e urgente pensarmos estruturas de formação para a mudança. Espaços interativos que nos permitam produzir, de forma colaborativa, um conhecimento pertinente, saberes outros que surgem do fazer dos coletivos em âmbito local e que podem ser replicados e escalados ao ser partilhados, saberes que vêm à tona a partir da construção dialógica e que, nesse movimento, não apenas se replicam e escalam, como se reinventam adquirindo, no encontro com o outro, novas dimensões.
E é por isso que o difícil momento em que vivemos apresenta, assim também, uma enorme oportunidade, tanto para o fortalecimento das competências destes sujeitos coletivos no uso de ferramentas e tecnologias de informação e comunicação, como para a possibilidade de criação de instâncias e ambientes de articulação, produção de conhecimento e ampliação do impacto das suas ações, hoje em meio digital, mas não só.
Trata-se da oportunidade histórica, e urgente, de articular as que Pierre Levy chamou de tecnologias da inteligência, entendidas como tecnologias da memória – a oral, a escrita e a informática – ampliando nossa superfície de contato em torno de espaços de educonexão e escrita colaborativa que tornem viáveis diálogos de saberes para um novo tempo. E para isso, temos já um enorme acúmulo de experiências, conhecimentos e tecnologias cuja base é a colaboração. A cibercultura, os softwares de código aberto ou Open Source, o licenciamento Creative Commons e o Open Acces, que têm possibilitado uma variedade de ferramentas e Recursos Educativos Abertos (REA), permitem hoje o desenvolvimento de estratégias de mediação, de forma segura, eficiente e autônoma.
Pluriverso coletivo
É a partir desse entendimento que nasce a ideia da Pluriverso. Em março de 2020, começamos a perceber que não haveria um retorno à dita ‘normalidade’, mas que estávamos vivenciando um movimento complexo de profunda mudança. Percebemos que o que está em jogo hoje é justamente o modo como iremos entrar nesse mundo pós-pandemia. O próximo passo nesse entendimento veio como consequência lógica: nesse contexto, é preciso não apenas desenvolver ações de enfrentamento imediato à pandemia, no sentido de evitar o contágio nos isolando, mas também fortalecer as redes locais, coletivos e organizações cujas ações partilham entre si saberes pertinentes à promoção da vida em comum, de forma sustentável e solidária.
A partir de então, começa a se articular o Coletivo Pluriverso em torno da ideia de possibilitar estratégias de sustentabilidade solidária a coletivos e organizações, articulados em redes, ampliando o impacto das suas ações e promovendo diálogos de saberes para uma mudança de paradigmas na sociedade.
Queremos apostar em práticas inovadoras já existentes em arranjos socioeconômicos locais, onde o fator “C”, definido por Luis Razeto Migliaro como fator essencial da economia solidária, é decisivo não só para a sobrevivência, mas contém as bases de possíveis novos arranjos societários que carregam em si as sementes de uma nova civilização: Colaboração, Criatividade, Cuidado, Comunicação, Comunidade, Circularidade, Cooperação, Comunhão, Conhecimento.
O espírito é o da roda, da troca, da mística e da poética que move nossos encontros desde sempre. Inspiramo-nos no Sankofa, que nos lembra que nunca é tarde para voltar a buscar o que esquecemos no caminho. Como humanidade sempre nos fortalecemos e desenvolvemos nossas habilidades em comunidades, rodas e redes. O momento atual exige que reinventemos esses espaços com as ferramentas disponíveis; alargando as fronteiras, ampliando nossas superfícies de contato, fortalecendo uma poética da relação das nossas culturas e, principalmente, gerando novas estratégias de sustentabilidade.
Assim, empurrados pelas nossas trajetórias entrelaçadas por anos em coletivos e redes, buscamos desenvolver uma proposta na qual nossa ação e o nosso dizer não estejam no centro, porque aprendemos com o poeta que “O melhor de mim sou eles”. Quisemos então, desenvolver uma plataforma na qual, por mais complexa e robusta que seja sua tecnologia, toda a sua riqueza esteja na ação e na troca dos seus anfitriões e daqueles que participem de uma forma ou outra dela. E é assim porque ela está centrada na potencialização de estratégias de articulação e mobilização de redes orgânicas, redes que existem antes da sua conexão digital. São redes constituídas por fortes vínculos político-afetivos do fazer e da memória coletivos.
A plataforma e outras estratégias
Com foco na co-elaboração e na conectividade entre fazeres e saberes, a Pluriverso busca o fortalecimento de coletivos, organizações e redes, contribuindo para a criação de condições que permitam novas possibilidades de existir, em roda, bem como o entrelaçamento de ações locais em uma perspectiva de desenvolvimento eco-sustentável e da diversidade biocultural.
Para isso, a plataforma Pluriverso coloca à disposição desses sujeitos, coletivos e redes, um conjunto de espaços e ferramentas integradas. Trata-se de uma plataforma que inclui, entre outros, um sistema de gestão da aprendizagem, pautada no conceito inovador de educonexão, que permite criar comunidades e redes em meio digital de forma autônoma, com espaços para criação de grupos de trabalho e organização e ferramentas de fóruns de debates indexados que facilitam a mediação.
Criando condições para os sujeitos, as organizações e coletivos desenvolverem suas próprias estratégias de sustentabilidade, queremos promover um ambiente em nuvem propício ao Diálogo de saberes para um novo tempo. Buscamos recriar os sentidos estruturantes de comunidade, rodas e redes, de modo a, desta forma, provocar mudanças que beneficiem milhares de pessoas e suas comunidades.
A revista colaborativa Pluriverso, onde você está lendo esse texto, é parte integrante e essencial do ecossistema Pluriverso. Seu conteúdo é produzido não apenas pelo nosso coletivo, mas pela rede de Anfitriões, composta justamente pelo conjunto de coletivos e organizações de que estamos falando, além de colaboradores política e afetivamente engajados neste movimento. São eles que articulam a curadoria de conteúdos organizada pelos grandes temas que nos movem a seguir sendo.
Estamos nascendo, reinventando-nos em meio a esse momento difícil e doloroso para muitos de nós e é cientes disso que cremos não exagerar ao dizer que este ato coletivo é um ato de afirmação da vida. A Pluriverso nasce como um ato de afeto e esperança ativa. Operando desde setembro de 2020 e desenvolvida sem patrocinadores nem grandes recursos financeiros, mas pela força da vontade solidária de um coletivo, a plataforma Pluriverso vem servindo de suporte para o trabalho de coletivos e organizações enquanto ainda vinha sendo aperfeiçoada e desenvolvida, contando, no momento da publicação deste editorial, já com mais de 750 membros ativos. Todos eles são parte desta história em movimento, que é um abraço e um canto de esperança.
Não estamos lançando uma ideia, nem muito menos apenas mais uma plataforma de cursos na internet. Essa foi lançada no início da pandemia e tomou corpo. Hoje, em junho de 2021, estamos prontos para abrir a roda, estender esse convite e ampliar o abraço.
(*) Claudio Barría Mancilla @claubarria é músico, doutor em Educação pela UFF, pesquisador do NIRA/FFP/UERJ e membro fundador do Coletivo Pluriverso.
(**) Colaboraram para este texto, com a sua ação e reflexão ativa no Coletivo Pluriverso, Camila Leite, Dani Araujo, Paula Latgé, Igor Franco, Nádia Rebouças, Caco Chagas, Fabiana Toyama, Julia Couto, Mariana Borgerth e no entrelaçamento de trajetórias, Lilian Amaral, Adriana Costa, Alexandre de Oliveira Pimentel, Ana Lobo e Salisa Rosa.