Por Lydia Hortélio
As formas de convívio, a relação das nossas crianças com a natureza, as descobertas e invenções, o aprendizado que fazem os Meninos do Mundo entre eles mesmos desde sempre, constituem o que podemos chamar Cultura da Criança, Cultura Infantil, ou seja, o conjunto dos fatos culturais da Infância: as experiências em plenitude e liberdade do Ser-Humano-Ainda-Novo. Este patrimônio se forma ao longo de nossa meninice, constituindo um corpo de conhecimento – um conhecimento com o corpo – que transmigra de geração em geração para além das fronteiras e idades, e chega até nós muito simplesmente, através dos Brinquedos de Criança, representando tudo de mais sensível e fundamental que possui a cultura de um Povo, aquilo que o faz sorrir.
Tecida na interação da Criança consigo mesma, com a outra e com o Mundo, a Cultura Infantil é vária, única e una em cada gesto, e a Criança, infante que é de sua espécie, necessita, como todas as outras, do espaço natural para exercer movimento próprio e inaugurar com vigor, suavidade e alegria seus talentos infinitos.
Façamos um parêntesis rápido para considerar como são – ou não são – planejadas nossas moradias e escolas, onde, paradoxalmente, apenas em poucos casos, podemos reconhecer a possibilidade da presença alegre de nossos Meninos. De um modo geral, são lugares sem Beleza, sem árvores, sem condições favoráveis à expansão de seu movimento, do feliz intercurso entre seus pares, das possibilidades de manifestação do imprevisível e inesperado…
A Natureza é necessária às nossas crianças para que haja afirmação de vida e crescimento. Não se pode pensar em educação, Educação verdadeira, se elas estão afastadas de seu habitat natural. Fora dele as crianças são fadadas a imensos desconfortos, desajustes intermináveis, uma cadeia de equívocos que só poderão ser sanados se reconduzirmos-nas à sua legítima casa: a Natureza. Ela é o espaço primordial, portador da Vida, com suas múltiplas dimensões e desafios.
Todos nós sabemos do poder inspirador, quase misterioso, que a Natureza exerce sobre nós: a gente pisa com cuidado e se sente diferente, se temos a relva fresca sob nossos pés, se caminhamos na areia da praia e sentimos a brisa do mar e o marulhar das ondas, se ouvimos o barulho da chuva e o cheiro de terra molhada, o gosto do mel no perfume da flor de candeia, o silêncio da noite sob as estrelas do céu infinito…
Quem tem encontro marcado com a Lua?! Mas a Natureza nos faz rever nossas necessidades e aponta, de maneira irreversível, a urgência que se evidencia, cada vez mais, de voltarmos ao Paraíso, encorajando-nos a defender para nossas Crianças e para o futuro do Mundo, a experiência da Vida em união com o Todo.
Para sermos sinceros, e muito simples, é preciso reconhecer que uma Educação Ambiental começa com a volta à Natureza. Já não podemos continuar lendo livros e pregando Ecologia a perder de vista. Urge passarmos da letra a uma ação efetiva que venha reconquistar nosso habitat natural. Num país de 8.500.000 Km2, isto não deveria ser um problema, antes uma predestinação! É preciso estar em meio às árvores, voltar a respirar ar puro, ouvir o canto dos pássaros, sentir o movimento do ar e das águas, o significado de sol e sombra, reparar nas cores e nas formas da Natureza, aprender ritmo e proporção, pulsar junto, compreender com o corpo, enfim, restabelecer a Natureza em nós mesmos.
E é preciso aspirar de forma viva e unificada, tendendo para o exercício da contemplação, a percepção da Inteligência na Criação, a Interligação de tudo com tudo, e viver com Alegria! As Crianças, tão cheias de Vida como são, existem em inteireza: sentimento, pensamento, ação, e além… são uma única e só coisa. É perfeita a economia das dimensões da vida humana quando se é criança. Aqui se fazem oportunas as palavras de Friedrich Schiller, esteta e filósofo alemão:
O Homem só é inteiro quando brinca,
e é somente quando brinca que ele existe
na completa acepção da palavra Homem.
Nesta magnífica afirmação que consagra o valor do Brincar e a grandeza do Ser Humano, está implícito o problema da Liberdade. Podemos trabalhar sem vontade, mas ninguém brinca sem querer! E é preciso completo assentimento. Em chão da mais absoluta liberdade e autonomia, ocorre, ao mesmo tempo, a mais perfeita obediência. Um enigma, paradoxo? Apenas a união dos opostos, harmonia no conflito, o mistério da Unidade e mistério nenhum, mas a Vida em plenitude e liberdade, a Cultura do Ser-Humano-Ainda-Novo: uma cultura do essencial. A Criança é ligada organicamente ao núcleo interno da Vida, e nutre, espontaneamente, esta relação. No Brincar fecha-se o círculo mágico da Vida: eu, o outro, o Mundo, e o Universo que se dão as mãos: Abra a Roda, tin dô lê… Tão natural, e necessário!
Diante das condições severas que vivemos hoje em dia, principalmente nas cidades grandes, brincar tornou-se um problema! Sofremos com a saudade de nós mesmos, e parece impossível furar o cerco. Chegamos a um ponto extremo, só nos resta a virada! É hora de afirmar o que sonhamos. O obstáculo é a alavanca, e o ponto de apoio está no brilho dos olhos de uma Criança que brinca…
A Cultura da Criança se faz brincando… Brincar é o que ela mais sabe, mais pode, e mais quer. É festa, caminho, promessa, Destino! E para brincar, é necessário “o lugar de brincar”… Levanta- se então, mais uma vez, o espaço natural, como elemento propulsor e condição que mais favorece e “puxa” o movimento Dentro. É na Natureza que a Criança melhor brinca e manifesta mais amplamente seu potencial criador.
Gostaria de afirmar, finalmente: Brincar é a língua da Criança e a respiração de sua Alma! E a fórmula seria: Criança com Criança, na Natureza! Urge empreendermos uma ação significativa que venha restituir às nossas Crianças o direito ao seu verdadeiro habitat. Isto exige de todos nós uma consciência clara e adesão firme à causa das Crianças.
Precisamos contar, impreterivelmente, com o esforço conjugado, e incondicional, de políticas públicas inteligentes e generosas. É necessário integrar nossas Escolas aos Parques e Reservas Ecológicas, além de proceder ao remanejamento dos espaços físicos escolares, provendo-os de árvores e condições favoráveis ao movimento das Crianças, à sua saúde e alegria, à sua Vida.
Vivemos uma época em que a questão ecológica não é mais desconhecida, e o esforço da humanidade civilizada é cada vez mais consciente, no sentido de buscar soluções para o descaminho que engendramos e que urge corrigir. Brincar tornou-se uma questão ecológica e diz respeito à sobrevivência da espécie. Que será de uma Humanidade que não vier a conhecer Infância? De que húmus haverá de crescer? Que Sonhos abrigará? Defender para nossas Crianças o direito de Brincar, é trabalhar, efetivamente, pela Liberdade e pela construção do Homem Novo: um Ser que se descobre divino em sua condição humana, ao perceber-se na interação consigo mesmo, com o outro e com o Mundo. Nossas Crianças disto são mestras!
Cada um precisa fazer sua parte, buscando salvar para nossa geração e para as gerações futuras, os espaços naturais que nos restam, ameaçados, como se encontram, de deterioração e perdas irreparáveis. Eles deverão tornar-se Jardins de todos e de cada um, e currículo avançado dos mais altos ideais de Vida e Conhecimento, a estender-se para todas as nossas Escolas através de ampla ação educativa, representando uma política pública de valor, que venha cumprir a necessidade clamorosa que se levanta há muito tempo em nosso País, de prover a Infância Brasileira dos espaços de Natureza a que têm direito. É preciso que se compreenda a Criança com saúde, graça, e o coração em Festa!
O Prof. Agostinho da Silva, um sábio nascido em Portugal que viveu entre nós e tanto amou o Brasil, levantou a imagem da Criança em vários momentos de sua obra, alertando, incisivamente, para “a revolução que falta”, aquela da Criança alçada ao Poder, à guiança dos Povos, e que se insinua por todo o território nacional, de norte a sul, de leste a oeste, como a Rosa dos Ventos, encoberta na mensagem das Festas do Divino, uma tradição portuguesa largamente difundida entre nós, onde se coroa um Menino Imperador do Mundo, soltam-se presos, e dá-se comida a todos, festejando o Reino do Espírito Santo e a Criança, artífice maior da Liberdade e do Amor, esperança do Mundo. Não seria hora de passarmos do símbolo a uma ação consequente que venha tornar o Sonho quotidiano, fazendo-se justiça à Criança, levando-a, finalmente, a cumprir seu Destino?
Levemos nossas Crianças para a Natureza, restituamos a elas o seu Reino, e confiemos que se cumpra sua Lei Maior: o Brincar, e a Liberdade; sua índole generosa: a Alegria, e o Amor; sua espiritualidade inata: a Busca, e a Contemplação.
Assim fazendo, estaremos construindo o Mundo Novo, que está à porta, à espera apenas de ser acolhido com o Coração. Não é impossível, e é tudo que mais queremos: por que não – FAZERMOS?
Casa das 5 Pedrinhas… Salvador, Bahia
* Lydia Maria Hortélio Cordeiro de Almeida é educadora e musicóloga brasileira. É uma referência na área dos estudos e práticas da Cultura da Infância.
Publicado originalmente em Jornal Tema Livre, Bahia, julho 2002, ano V, n 53, Instituto Anísio Teixeira, SECBA/ Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Bahia.
(*) Foto de capa de @camila_r_leite
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