Por Centro de Referências em Educação Integral
Promover uma educação antirracista envolve repensar uma série de dimensões da escola: formativa, de atendimento, do clima escolar, de composição do quadro de educadores(as), gestão, avaliação, arquitetura, alimentação, rotina, material didático e, ainda, construir um currículo decolonial.
Esse trabalho encontra respaldo na Lei nº 10.639 e na Lei nº 11.645, que tornaram obrigatórios os estudos da história e da cultura indígena, africana e afro-brasileira em todas as escolas do país. O objetivo é mostrar a luta dos negros e indígenas no Brasil, sua influência na formação cultura e da sociedade nacional brasileira, resgatando suas contribuições para as mais diversas áreas.
Assim, combater o racismo é lei. E o papel das escolas nesta tarefa está previsto em diversos documentos, como na Constituição, na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e no Plano Nacional de Educação (PNE).
Por que precisamos de um currículo decolonial?
Construir um currículo decolonial requer, primeiro, reconhecer que o racismo é estrutural, isto é, está presente e é atualizado em todas as esferas de nossa sociedade, a não ser que haja um esforço contrário, antirracista.
Assim, as escolas, como são feitas por pessoas de nossa sociedade estruturalmente racista, também reverbera essa violência em seu interior, em todas as suas dimensões.
Na luta antirracista há dois aspectos centrais. A primeira é o combate ao genocídio da população negra e indígena e à necropolítica, que promovem o extermínio dessas populações. Aqui, as escolas podem atuar como parte da rede de proteção integral aos estudantes e suas famílias, ajudando a promover seus direitos.
A segunda dimensão é o enfrentamento ao epistemicídio que, quando não consegue eliminar os sujeitos fisicamente, promove o apagamento da história, cultura e identidade de um povo: uma morte subjetiva. É aqui onde entra o currículo decolonial.
Nilma Lino Gomes, pedagoga brasileira que é uma das principais referências em educação antirracista, explica que “[…] a colonialidade opera, entre outros mecanismos, por meio dos currículos”.
Neles, o racismo está expresso de diferentes maneiras. Por exemplo, em História quando retrata apenas a versão dos brancos europeus sobre o processo de Independência do Brasil, às margens do Rio Ipiranga, e ignora a luta de mulheres e homens negros e indígenas ao longo de séculos pela sua libertação em todo o território brasileiro.
Em Matemática, quando trazem apenas as referências e conhecimentos de estudiosos brancos e homens, deixando em segundo plano as contribuições de outras populações – do passado e atuais.
Nas Ciências, também diz respeito ao modo de investigar o mundo – por meio dos livros, de aulas expositivas, apenas – e desconsiderando os conhecimentos empíricos, a importância de sair a campo, a sabedoria popular e do território e os avanços e produções científicas, tecnológicas e conceituais de outros povos para além da Europa e dos Estados Unidos.
Aníbal Quijano, sociólogo e pensador humanista peruano, explica que esse tipo de currículo pauta-se em uma falsa dicotomia que classifica os grupos humanos em “inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e modernos”.
Para as crianças e adolescentes não-brancos, em processo de formação de sua subjetividade e identidade, as consequências disso são perversas. Muitas delas, ao verem a si, à sua família e ancestralidade retratadas em condição de subalternidade, se sentem desmotivadas a ir à escola e aprender, o que pode levar à exclusão escolar. Ou quando continuam a frequentá-la, seguem submetidas a sucessivas violências, tendo sua autoestima fragilizada e, portanto, com mais dificuldades para aprender.
Para os estudantes brancos também há consequências: passam a se acreditar superiores, com mais direitos do que as demais pessoas, o que pode levar a se autorizarem a violências, discriminações e a permanecerem ignorantes em relação à complexidade da sociedade, dos conhecimentos e do mundo.
Como começar a construir um currículo decolonial?
A primeira característica de um bom currículo decolonial é sua construção coletiva. Isso significa que educadores(as) e gestores(as), devidamente formados e respaldados pela Secretaria de Educação, precisam ouvir estudantes, famílias e funcionários para, coletivamente, construir o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola na perspectiva antirracista.
Do contrário, implementar um currículo decolonial costuma tornar-se tarefa hercúlea de uma única professora, sem interdisciplinaridade e em momentos muito pontuais, sem que os estudantes encontrem coerência desse trabalho com as relações interpessoais, nas pessoas que ocupam os lugares de referência da escola e outras dimensões da vivência escolar.
Nesse trabalho em grupo, o que deve se ter em mente é que decolonizar o currículo significa questionar, em todas as áreas do conhecimento e práticas pedagógicas, a suposta universalidade de qualquer saber, modo de viver e ser. É mostrar a diversidade, a pluralidade de narrativas que compõem diferentes verdades e retratos da realidade, dando igual importância para a contribuição de diferentes povos, as diferentes maneiras de viver a vida e construir conhecimento.
Na prática, isso significa se debruçar sobre o currículo e o planejamento para definir de quais maneiras as questões raciais podem permeá-los nas dimensões intelectuais, históricas, políticas, artísticas, estéticas e práticas. Esse caminho é singular e múltiplo, já que pode ocorrer de diferentes formas a depender do perfil da turma, dos educadores, do contexto em que a escola está inserida e da pactuação em torno do PPP.
Nesse processo, é fundamental considerar o território e promover a valorização da comunidade e suas lideranças, de seus saberes e de sua riqueza natural, cultural, histórica, entre outras.
Em suma, trata-se de criar um currículo que faça sentido para os sujeitos do processo de ensino e aprendizagem, com a finalidade de humanizar a vida, o conhecimento e as relações sociais.
Referências:
“O Movimento Negro e a intelectualidade negra descolonizando os currículos”, por Nilma Lino Gomes, em “Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico”. (Autêntica, 2018).
“Colonialidade do poder e classificação social”, por Aníbal Quijano, em “Epistemologias do Sul”, (Cortez Editora, 2010).
“Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos”, Boaventura de Sousa Santos (CEBRAP, 2007).
O Centro de Referências em Educação Integral promove, desde 2013, a pesquisa, o desenvolvimento metodológico, o aprimoramento e a difusão gratuita de referências, estratégias e instrumentais que contribuam para o fortalecimento da agenda de Educação Integral no Brasil.
Essa matéria foi extraída do Glossário de conceitos criado e publicado pelo CEI.
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