Trajetórias coletivas na busca por direitos
A ideia central deste artigo é refletir sobre os diversos elementos que influenciam a ação dos educadores populares, em especial, das organizações da sociedade civil. Nesse contexto, nos perguntamos se determinadas leis setoriais, para além de estabelecerem limites do permitido com base no marco legal, também impactam direta ou indiretamente o fazer pedagógico.
A sociologia das formas simbólicas nos ensina que ideias e concepções produzidas em determinados grupos podem impor consensos na sociedade, moldando comportamentos e influenciando práticas educativas. Nessa análise, tentamos indagar como essas leis, enquanto produções simbólicas legitimadas, podem exercer um efeito pedagógico significativo nas atividades sociais e profissionais.
Todavia, a tarefa proposta se tornaria impossível sem definir o recorte a ser analisado. No contexto dessa reflexão mais ampla, propomos observar a origem da LDB e do ECA. Isto é, com um olhar atento às trajetórias do movimento sociais que deram origem a cada uma delas. Assim, buscaremos refletir sobre seu impacto nas ações educativas de organizações da sociedade civil herdeiras dos movimentos sociais de defesa de direitos da infância na década de 1980. Tais organizações têm costumam combinar ações de assistência e garantia integral de direitos com práticas da Educação Popular, numa perspectiva de transformação social.
Assim, a ideia é traçarmos as linhas gerais do processo que levou à promulgação de ambas as leis, e tentarmos apontar alguns elementos específicos da função que cada uma delas cumpre nos diversos espaços apontados.
Legislação e movimentos sociais pela cidadania
Tanto o ECA quanto a LDB têm em comum o fato de terem sido precedidas por uma grande mobilização social. Foi essa mobilização que, por meio de intensos debates em diferentes áreas, levou, de um modo ou outro, à sua promulgação. Todavia, o resultado desses processos não foi o mesmo, no sentido de a lei promulgada responder aos anseios dos mesmos setores em disputa em ambos os casos.
A história evidencia que as leis, em sua maioria, tendem a refletir os interesses das classes dominantes de uma sociedade. Isso, porque desempenham um papel central na manutenção da ordem e estrutura sociais estabelecidas, que favorecem essas classes no contexto sociológico, histórico e político.
No entanto, ao longo do tempo, observamos processos contrários em resultado de lutas contra hegemônicas lideradas pelos setores populares. Através da organização, mobilização social e alianças com setores de instituições tradicionais, como a Igreja, ONGs, entre outras, tem-se provocado mudanças em estruturas legais.
ECA, um movimento social de sucesso na letra…
A promulgação do ECA, foi o resultado direto de um movimento social que aglutinou educadores sociais do país todo e as mais diversas organizações da sociedade civil, com destaque para o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua –MNMMR.
Em meados da década de 1970, setores da Igreja Católica, especificamente da Pastoral do Menor, iniciam uma série de debates e mobilizações. Foi se consolidando o entendimento, dentro do movimento, de que, para além da situação de miséria e violência que atingia à maioria da população infantil brasileira, a discriminação encontrava-se dentro da própria estrutura legal.
Até então, predominava uma visão que classificava a infância, e principalmente as responsabilidades cabidas ao Estado ou à família, segundo esta classificação:
“(…) de acordo com sua origem familiar, portanto sua herança social. Os bem-nascidos terão a infância garantida; os demais estarão sujeitos ao aparato jurídico-assistencial destinado a educá-los ou corrigi-los. Alguns serão crianças e os demais, menores.”
Rizzni, I & Pilotti
A expressão desta distinção ficava consagrada na existência da Vara da Família, para atender à infância normal e o Juizado do Menor, para a infância pobre ou desvalida.
O movimento da sociedade em prol dos direitos da infância, liderado por organizações e grupos comprometidos com os setores mais desfavorecidos da classe trabalhadora, resultou em uma lei que propõe uma profunda mudança de paradigmas na concepção de infância no Brasil.
…e um caminho ainda por percorrer nas ruas
Essa mudança, além de ampliar e aprofundar os mecanismos de participação popular, afeta diretamente os modos de atendimento à criança e ao adolescente.
A lei supera a antiga doutrina da situação irregular e adota a doutrina da proteção integral, ancorada em uma perspectiva de direitos universais. Dessa forma, a dicotomia criança x menor é superada, e os direitos fundamentais e sua responsabilidade são ratificados e especificados de acordo com a Constituição.
Assim, a nova lei propicia uma mudança cultural com desdobramentos pedagógicos. Alguns deles explicitamente declarados, através da proposição exaustiva e detalhada dos instrumentos de operacionalização da lei, descritos no Livro II ou parte especial do Estatuto.
Falamos em mudança cultural para nos referir à maneira que, sob a influência do Estatuto, passam a se estabelecer as relações que envolvem as crianças. Entretanto, essa mudança de dá de forma mais explícita, nas classes populares. De fato, muda especificamente a relação entre educadores e educandos e assistentes sociais e crianças nos projetos sociais. De modo geral e, principalmente, muda o papel que passam a ocupar as crianças – agora tidas como sujeitos de direitos – nessas relações.
Assim também, no próprio modo em que é percebida a infância ocorre uma sutil mudança que implica numa concepção diferenciada dos seus direitos e deveres. E esta não se dá somente na percepção desses agentes sociais, mas também das famílias e da comunidade, como um todo.
Deste modo, não é arriscado afirmar que o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei insurgente. O ECA é de fato um corpo legal que claramente se coloca contrário a uma cultura dominante na sociedade. Pelo mesmo, encontra ainda hoje grande resistência nos setores mais reacionários às mudanças sociais.
LDB, a difícil trajetória de luta pela educação pública, gratuita e de qualidade
Embora não caiba aqui uma descrição aprofundada do longo e complexo processo de lutas e debates sobre Educação na ANC e daqueles que levaram à promulgação da LDB de 1996, torna-se necessário apontar minimamente alguns elementos que definiriam sua forma final.
O tema da Educação foi um dos mais discutidos durante o processo de elaboração da nova Carta constitucional. O mesmo mobilizou amplos setores da sociedade como agremiações, sindicatos, intelectuais, organizações empresariais ligadas à educação e organizações confessionais.
O debate estava já inscrito num longo processo de escala global, de mudanças econômicas, sociais e políticas, que iriam incidir profundamente nas normativas sobre o ensino escolar, seu papel e suas formas de financiamento.
No centro, a disputa entre os conceitos de público e privado na educação. Em jogo, estava o sentido de um reordenamento do significado e sua função real. Trata-se de uma mudança profunda que faria sentir seus efeitos oito anos mais tarde, na promulgação da nova LDB.
As mesmas forças sociais, com destaque para as organizações de docentes, continuaram a ser protagonistas no processo de elaboração da nova LDB, contudo, com resultados muito diferentes.
Uma Lei que não pode ser tudo que era pra ser
O projeto original para a nova LDB, apresentado em 1988 e do substitutivo Jorge Hage, aprovado pela Comissão de Educação da Câmara em 1990, apresentavam semelhanças com o ECA. Entre outros elementos, enfatizava a participação popular e os direitos dos setores populares na educação.
No Senado, o relator Cid Sabóia apresentou um substitutivo considerando também outro projeto de LDB de autoria do Senador Darcy Ribeiro, mas mantendo a estrutura original. Dito subtituto significava ainda importantes avanços no sentido do fortalecimento do ensino público e gratuito.
Entretanto, com a assunção da coalizão de centro direita em 1995, o projeto enfrentou resistência no senado. Consolidando uma postura contrária à visão de uma democracia participativa, o projeto original foi considerado inconstitucional na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Para Dermeval Saviani a lógica da declaração de inconstitucionalidade fica clara ao analisar que os legisladores tiveram
“(…) os olhos voltados para a liberdade da iniciativa privada em matéria de educação descobrindo inconstitucionalidades onde suspeitava(-se) que os interesses privados seriam afetados.” (A nove lei da educação)
Esse processo acabou resultando em um novo substitutivo moldado na estrutura de Ribeiro e aprovado finalmente em dezembro de 1996. A política educacional que a nova LDB parecia fortalecer prioritariamente faria sentir seus efeitos na década seguinte.
Até os dias de hoje, o tema é questão central nos debates sobre o ensino escolarizado, notadamente num momento de avanço das políticas de privatização do ensino nos diversos níveis da educação formal.
Contudo, professores e professoras da rede pública se posicionam de modo distante, tentando resolver problemas cotidianos a partir de reflexões que parecem desconhecer os alcances da lei na sua prática educacional. É esta uma questão, todavia, a ser pesquisada com maior cuidado junto ao corpo docente.
ECA, LDB e participação popular
O ECA, lei precedente à LDB, dispõe especificamente sobre o direito à educação nos artigos 53° ao 58°. Contudo, pode-se observar que algumas destas disposições, embora recolhidas na LDB no Título referente a princípios e fins da educação, vêm sendo resolvidas com atenção a critérios quantitativos e formais, em detrimento da preocupação político-pedagógica tantas vezes defendida pelos seus promotores.
Assim por exemplo, a questão da igualdade de condições de acesso à escola. De modo geral, temde-se à matrícula compulsória, sem avançar na garantia de condições mínimas de assistência às camadas mais pobres da população. Do mesmo modo, na implementação de programas curriculares que apontem para uma prática pedagógica que inclua, por exemplo, as crianças e adolescentes em situação de rua.
Tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) têm abordagens distintas sobre a educação. O ECA legisla sobre o Sistema de Garantia de Direitos da Infância, incluindo a educação de forma ampla, não se limitando ao ensino escolarizado. Seus efeitos pedagógicos surgem da sintonia com objetivos políticos e interesses das classes populares.
Já a LDB disciplina a educação escolar, estabelecendo um marco para práticas pedagógicas formais, alinhavando a educação escolar a um projeto de nação específico.
Entretanto, dispositivos que poderiam fortalecer a mudança social, cultural e política, aumentando a participação popular na elaboração e controle das políticas públicas para a infância, não foram aproveitados na versão final da LDB. Sem dúvida, isso poderia ter acelerado debates e mudanças em prol de um sistema educacional mais abrangente e inclusivo para o povo brasileiro.
Em tempo, é interessante perceber como o caráter insurgente do ECA opera como estimulador de debates, tendo efeitos diretos no fazer dos educadores populares, motivando ainda diversas mobilizações pela sua total implementação.
Algumas considerações finais
As leis, quando legitimadas por grupos sociais amplamente envolvidos no processo de sua gestação, operam de um modo muito mais ativo no seio da sociedade. Nesses casos, sua promulgação passa a ser tida como mais uma motivação para sua real efetivação. Do mesmo modo, estimulam novas mudanças sociais a partir delas. Assim, continuam influenciando processos educativos em diversos âmbitos da sociedade onde têm atuação os grupos envolvidos.
Essa influência na subjetividade dos agentes sociais envolvidos têm incidência decisiva nos processos cognitivos. Assim, esses processos são redefinidos a partir do compromisso com a implementação do projeto de sociedade legitimado ao interior do próprio grupo. Isto porque os agentes se sentem artífices e produto desse projeto.
Pelo contrário, leis onde predominam os interesses de grupos dominantes, conseguem regulamentar a vida social, mas não operar mudanças subjetivas na população. Em muitos destes casos, faz-se necessário o dispêndio de força em diversos graus por parte do Estado para sua efetivação.
Diferente da LDB, o ECA é um dos raros casos de leis afinadas aos movimentos sociais que demandaram sua criação. Embora não haja contradições jurídicas entre ambas as leis, suas funções na prática, operam em sentidos quase opostos. Isto fica evidente se pensarmos sua influência no modo em que determinadas percepções do fazer social se tornam legítimas na sociedade.
Isso devido, provavelmente, ao fato das conquistas alcançadas na LDB não serem suficientes com relação à demanda social. Isto é, sua estrutura final não representa as mudanças almejadas pelo movimento social que lhe deu origem.
Essa interface entre leis e práticas sociais constitui um dos elos fundamentais da consolidação dos processos de construção democrática da sociedade. A compreensão da sua dinâmica torna-se assim essencial ao estudo e à reflexão sobre as próprias práticas pedagógicas comprometidas com tal processo de transformação social.
(*) Este texto é uma adaptação resumida de artigo acadêmico original, disponibilizado pelo autor para consulta e download em Academia.edu e disponível também na biblioteca da Anped. Nele você poderá encontrar um desenvolvimento mais aprofundado, com dados e referencias bibliográficas sobre o tema da pesquisa.
Claudio Barría Mancilla é arte educador, pesquisador, músico e diretor de arte chileno radicado no Brasil desde 1995, é doutor em Educação pela UFF, pesquisador do NIRA/FFP/UERJ e membro fundador do Coletivo Pluriverso e do Conselho Editorial da Revista Pluriverso.