ISSN 2764-8494

ACESSE

Comunicação
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O jornalismo de Dom Phillips vive

Menos de duas semanas depois dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, profissionais de comunicação de vários países decidiram aceitar o convite do consórcio Forbidden Stories para dar continuidade aos trabalhos de um colega de profissão. Àquela altura, outros jornalistas investigativos já tinham procurado o consórcio para sugerir que fosse iniciada uma força-tarefa. Esta tem sido a missão dessa organização sem fins lucrativos sediada na França, que busca tornar visível e impactante o trabalho de repórteres que não podem mais investigar.

“Bruno e Dom morreram por tentar nos informar sobre os crimes daqueles que sufocam o ‘pulmão’ do nosso planeta”, afirmou Laurent Richard, fundador e diretor do consórcio Forbidden Stories (Leia abaixo o editorial do diretor Laurent Richard).

Em poucas semanas, novos veículos e mais profissionais foram sendo agregados, chegando a mais de 50 jornalistas de 16 organizações de mídia, incluindo a Amazônia Real, único veículo da região Norte do Brasil. Além da agência, integram o Projeto Dom e Bruno a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Der Standard (Áustria), Expresso (Portugal), Folha de S.Paulo (Brasil), Le Monde (França), NRC (Holanda), Ojo Público (Peru), Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) (Estados Unidos), Paper Trail Media (Alemanha), Repórter Brasil (Brasil), Tamedia (Suiça), The Bureau of Investigative Journalism (Reino Unido), The Guardian (Reino Unido) e TV Globo (Brasil).

Ao longo de quase um ano, os representantes dos veículos realizaram reuniões remotas, coordenadas pela equipe da Forbidden Stories, para buscar diferentes histórias, sempre com o viés investigativo. Da grilagem de terras à exploração de madeira, do garimpo ilegal ao avanço do desmatamento na Amazônia, não faltariam pautas jornalísticas para trabalhar, ainda que a região Norte não deva ser traduzida apenas por esse recorte negativo. Mas, desta vez, seria necessário olhar de forma crítica sobre o destino da maior floresta tropical do mundo.

Bruno Santos / Folha Press

“A gente está mostrando que a voz do Dom Phillips não foi calada e a voz do Bruno Pereira também não. Os dois vão permanecer vivos na Amazônia. E estamos provando que é possível juntar mídias tradicionais e independentes em diversos países em prol dessa causa, que é a causa do bom jornalismo e é a da democracia”, acrescentou Kátia Brasil, cofundadora da Amazônia Real, e integrante da Forbbiden Stories.

Dom Phillips decidiu ir ao Vale do Javari, em junho do ano passado, para registrar como a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) tem lutado para salvar a Amazônia, tema do livro que pretendia escrever a partir de suas várias andanças pela floresta. Não haveria para o jornalista britânico melhor companhia do que Bruno Pereira, funcionário licenciado da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e conhecedor como poucos do Vale do Javari. O indigenista militava do lado dos indígenas, prestando serviços à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Com o convite para participar do consórcio Forbidden Stories, a agência procurou contribuir a partir de sua experiência na cobertura dos grandes temas da Amazônia. Firmou uma parceria com o jornal Expresso, de Portugal, viabilizando a ida de jornalistas para reportagens de campo, que serão apresentadas nos próximos dias. Era importante averiguar, in loco, pautas que historicamente representam uma ameaça à floresta. E, para isso, contou com profissionais experientes.

“Não é de hoje que a floresta amazônica e suas populações estão sob forte ameaça. Por isso fazemos o que fazemos e não há glamour nisso; o que existe é responsabilidade. É uma luta diária, que infelizmente e repetidamente termina de forma cruel e dolorosa”, relata Bruno Kelly, um veterano fotojornalista de coberturas na região. Ele esteve, inclusive, em Atalaia do Norte (AM), quando as autoridades policiais procuravam por pistas de Bruno e Dom.

“É uma guerra e a floresta e seus guardiões, as populações tradicionais, estão na linha de frente. São guerreiros e guerreiras que inspiram a todos e nos mostram que não podemos parar. Eles estão na batalha há centenas de anos e continuam nela sem hesitar. Por eles e por nós também.”

Bruno Kelly

Leanderson Lima, outro jornalista que fez parte do consórcio pela Amazônia Real, viajou para um Brasil profundo, e descobriu que, muitos anos após o fim da ditadura militar, um modelo de desenvolvimento destrutivo permanece como herança sombria daqueles anos.

“Essa é a cara de um País que tem o péssimo hábito de empurrar tudo com a barriga, de fazer as coisas apressadamente, sem os devidos cuidados, sem cumprir o que diz a legislação e sem se preocupar com o futuro. Só o agora importa”.

O jornalista Francisco Costa, desde o início dos preparativos para a sua reportagem de campo, tinha consciência de que o consórcio tinha uma importância que transcendia o próprio jornalismo. “Em conversas com o fotojornalista Bruno Kelly, chegamos a falar de quanto era importante essa cobertura e de como tinha muita representatividade tanto para os povos que entrevistamos como para as comunidades que conhecemos e para a Amazônia”, diz. A sua reportagem, em especial, envolvia dificuldades maiores, por demandar negociações comuns de quem faz jornalismo investigativo.

“De uma forma geral não é fácil fazer reportagens na Amazônia, existem inúmeros riscos, desafios, ameaças e distâncias geográficas quilométricas. Mas não podemos recuar diante de tantas situações. O jornalismo não pode e nem deve parar.”

Dom Phillips e o pescador Jânio Freitas de Souza. Imagem tirada do celular de Bruno Pereira em 5 de junho de 2022 (imagem: TVGLOBO / GLOBOPLAY)
Dom Phillips e o pescador Jânio Freitas de Souza. Imagem tirada do celular de Bruno Pereira em 5 de junho de 2022 (imagem: TVGLOBO / GLOBOPLAY)

Detector de metais

Às 7h03 de 5 de junho de 2022, Bruno Pereira fez o último registro fotográfico do jornalista Dom Phillips. Ambos estavam na comunidade São Rafael, às margens do rio Itaquaí, no Vale do Javari, no Amazonas. Na imagem, Dom está de costas e conversa com Jânio Freitas de Souza. Quatro minutos antes, o indigenista registrou outra imagem do pescador segurando um filho pequeno no colo. No mesmo aparelho celular, há outras imagens e alguns vídeos, todos eles provas materiais robustas e já de posse da Polícia Federal (PF), responsável por investigar o brutal assassinato de Bruno e Dom.

Deve-se ao jornalismo o mérito pela descoberta dessas imagens. E também aos indígenas, que nunca desistiram de lutar pela busca da verdade. Foram eles que solicitaram à jornalista Sônia Bridi, que realizava um documentário para a Globoplay, um aparelho detector de metais.

A EVU tinha esperanças de localizar mais vestígios de Bruno e Dom perdidos no meio da mata. E eles acharam. São pertences valiosos, como o óculos do indigenista, um documento do jornalista e o celular de trabalho de Bruno, afundado sob um monte de lama, ramos e galhos de árvores.

“Quando encontraram a carteira de imprensa do Dom e os cadernos que ele usava para anotações, foi especialmente triste para mim. Foi a materialização, nos objetos que fazem parte do nosso ofício, da morte brutal de um jornalista”, afirmou Sônia Bridi, que dirige o documentário Vale dos Isolados, o assassinato de Bruno e Dom, da Globoplay. A equipe da emissora acompanhou, em várias idas ao Vale do Javari, os trabalhos da EVU.

O celular de Bruno Pereira, recolhido na mata, foi enviado ao Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal, em Brasília. Os peritos conseguiram recuperar os dados contidos nele, inclusive com as imagens inéditas. Os metadados, mostrando registros dos últimos meses do indigenista, com data e hora, podem contribuir para elucidar as circunstâncias do duplo homicídio. Essa história está presente no revelador documentário Vale dos Isolados, que vai ao ar nesta sexta-feira, dia 2, e é uma das dezenas de produções jornalísticas que fazem parte do Projeto Bruno e Dom, fruto dessa iniciativa de investigação jornalística coletiva.

Consórcio Forbidden Stories

No conjunto, os 16 veículos produziram uma obra para a posteridade, e honraram com o desejo de Dom Phillips de lutar pela salvação da Amazônia. São parcerias inéditas que permitiram a jornalistas do consórcio Forbidden Stories se unir ao tradicional jornal The Guardian e à rede investigativa fronteiriça Ojo Público para investigarem a complexa realidade do Vale do Javari, por exemplo. Ou atualizar uma investigação de como produtos amazônicos acabam parando nos mercados internacionais por meio de brechas e mais brechas, em reportagem produzida por Repórter Brasil, The Bureau of Investigative Journalism, NRC, Paper Trail Media e OCCRP.

Nesse quase um ano de trabalho, foram dezenas de entrevistas em profundidade, pedidos de acesso à informação, mapeamentos e cruzamentos de dados inéditos, obtenção de documentos reservados e viagens a campo. O consórcio Forbidden Stories conclui o Projeto Bruno e Dom com a certeza de que ele representa apenas uma batalha dentro de uma luta que está longe de acabar.

Por uma questão editorial, a Amazônia Real decidiu republicar as principais histórias de veículos como forma de potencializar o alcance dessas produções. O conjunto de reportagens pode ser acessado a partir desta página especial para o Projeto Bruno e Dom.

Cobertura dos assassinatos

Para um mundo incrédulo diante da possibilidade de um crime brutal ou de pessoas que tentaram desacreditar o trabalho jornalístico, em junho de 2022, a agência decidiu confiar nos relatos de alguém que testemunhou os últimos momentos de Bruno e Dom. Com uma rigorosa checagem de dados, a Amazônia Real sabia que era preciso cumprir com a sua missão: “Fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo”.

Nas primeiras horas da manhã de terça-feira 7 de junho de 2022, a cofundadora da Amazônia Real, Elaíze Farias, compartilhou com os editores da agência sete áudios que recebera de uma fonte indígena. Os relatos eram assustadores. Essa pessoa fazia parte da equipe de vigilância, que esteve com Bruno e Dom até poucas horas antes dos assassinatos. A principal hipótese e esperança eram que o indigenista e o jornalista estivessem desaparecidos. Mas a fonte temia pelo pior: eles teriam sofrido uma emboscada.

Elaíze Farias e Bruno Kelly nos bastidores da reportagem no Vale do Javari junto com cacique Mauro Kanamari (Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real)
Elaíze Farias e Bruno Kelly nos bastidores da reportagem no Vale do Javari junto com cacique Mauro Kanamari (Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real)

Em 2022, o Brasil era governado por Jair Bolsonaro, que naquele momento não tinha a menor intenção, tampouco vontade política, para fazer com que as autoridades investigassem os fatos. E boa parte da imprensa ainda se pauta pelo discurso das fontes oficiais. Já a Amazônia Real pratica um jornalismo que “busca grandes histórias da Amazônia e de suas populações” e é reconhecida por seus povos, sobretudo as minorias, por dar visibilidade às suas causas. No trágico assassinato de Bruno e Dom, foram essas fontes que procuraram primeiro a agência para relatar o que viram.

Na cobertura “a quente” do caso, a agência enviou o jornalista Cícero Pedrosa Neto para o Vale do Javari, onde produziu o noticiário das investigações policiais em curso e um alentado relato dos minutos finais de Bruno e Dom. Quando esta história foi publicada, até hoje a de maior audiência do site, os corpos do indigenista e do jornalista ainda não haviam sido encontrados. Muita desinformação circulava naquele momento, e a reportagem esclarecedora da Amazônia Real serviu de referência para esclarecer a opinião pública do que se sabia até então. A reportagem foi um antídoto contra as fake news.

Leia o editorial da Forbidden Stories

Continuamos o trabalho do Bruno e do Dom na Amazônia porque o nosso futuro depende disso

Por Laurent Richard, fundador e diretor do consórcio jornalístico Forbidden Stories

“Essa história precisa ser contada.”

Em 26 de junho de 2022, 11 dias após a descoberta dos corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips, câmeras de todo o mundo captaram a revolta de Sian Phillips, irmã do jornalista britânico assassinado, durante seu funeral. Cercada por parentes, todos de camisetas pretas estampadas com uma foto de Dom em meio à mata densa, ela explicou que seu irmão foi morto por “tentar contar o que está acontecendo com a floresta”.

Investigar crimes ambientais se tornou um dos temas mais perigosos para jornalistas cobrirem nos últimos anos. Segundo a Repórteres Sem Fronteiras (RSF), aproximadamente dois jornalistas são mortos por ano devido ao seu trabalho sobre desmatamento, mineração ilegal, grilagem de terras, poluição e outros temas relacionados ao impacto das atividades industriais. Os ambientalistas também são alvos frequentes. De acordo com um relatório da Global Witness, 1.700 ativistas ambientais foram mortos entre 2010 e 2020.

Dom Phillips era, contudo, um dos repórteres mais experientes, tendo realizado coberturas na Amazônia por mais de 15 anos. Bruno Pereira, especialista em comunidades indígenas, também conhecia esse terreno melhor do que ninguém. Os dois partiram em uma missão juntos no Vale do Javari, onde traficantes de madeira, de drogas e de peixes transformaram o local em um polo de contrabando criminoso.

No entanto, os assassinos de Bruno e Dom não impedirão que a opinião pública descubra o que eles tanto tentam esconder. Durante um ano, sob a coordenação da Forbidden Stories, mais de 50 jornais de 16 organizações de imprensa continuaram o trabalho das duas vítimas, para que seu trabalho não fosse silenciado, como eles foram. Bruno e Dom morreram por tentar nos informar sobre os crimes daqueles que sufocam o “pulmão” do nosso planeta.

E os temas trabalhados pelos dois estão mais próximos do seu cotidiano do que você imagina. O apetite global por carne bovina, por exemplo, está acelerando a catástrofe, com cerca de dois terços do desmatamento na Amazônia sendo causado pela pecuária.

Em 2019, já havíamos coordenado o Projeto Sangue Verde, com 30 veículos de comunicação dando continuidade às investigações de jornalistas indianos, guatemaltecos e tanzanianos sobre os danos ambientais causados pela indústria de mineração. Traçando as várias cadeias de suprimentos, nossos repórteres puderam rastrear as ações de dezenas de multinacionais, e terminaram chegando no coração do Vale do Silício, na Califórnia.

Sem jornalistas em campo, ninguém saberá o que está por trás das publicidades de industrialistas, promovendo campanhas ecológicas, uma mais verde do que a outra. Além do forte impacto que as mudanças climáticas produzem nas populações mais vulneráveis, assim como nos jornalistas e ambientalistas que tentam protegê-las e divulgá-las. No entanto, é um direito da imprensa, proclamada oficialmente no Rio de Janeiro sob a égide das Organizações das Nações Unidas durante a ECO-92 (“Earth Summit”), o poder de questionar as empresas poluidoras e os tomadores de decisões políticas que permitem que elas o façam, à moda de Não Olhe para Cima.

Sem acesso a informações independentes, ninguém salvará o planeta.


Eduardo Nunomura é editor de especiais na Amazônia Real ([email protected]). Mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, é professor de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Iniciou a carreira jornalística em 1992, no grupo Folha, e teve passagens pelo Estadão e pela revista Veja. Foi repórter especial por quase dez anos no Estadão.

Esta matéria foi publicada no site Amazônia Real.

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