Desindustrialização, desnacionalização e endividamento opressivo sugam recursos da maioria para servir a interesses estrangeiros e uma elite local clientelista. Ao celebrar o bicentenário, temos a soberania por resgatar.
Por Ladislau Dowbor
A economia hoje é em grande parte globalizada. Em particular, com o dinheiro impresso por governos substituído por dinheiro virtual emitido também por bancos (97% da liquidez), as finanças passaram a funcionar em escala planetária. Por exemplo 3 corporações privadas, BlackRock, Vanguard e State Street, administram cerca de US$ 20 trilhões de dólares, três vezes o orçamento federal dos Estados Unidos. A globalização financeira reduz drasticamente a autonomia dos países definirem os seus rumos, já não só frente a países mais fortes, mas frente ao poder corporativo. Basicamente temos governos nacionais que enfrentam uma economia globalizada. O conceito de independência encontra aqui uma limitação estrutural.
Um segundo eixo que limita a autonomia de decisão é o controle norte-americano sobre as transações internacionais, por meio da dominação do dólar. Essa herança de Bretton-Woods, do fim da II Guerra Mundial, permite aos Estados Unidos emitirem dólares sem limites, sem gerar inflação ou desvalorização da moeda, na medida em que são absorvidos por bancos centrais de diversas partes do mundo. Tentativas de os países comercializarem entre si sem passar pelo dólar e taxas de transação são até hoje atacados militarmente pelos Estados Unidos (Iraque e outros). Um novo polo está se constituindo, inicialmente com China, Rússia e Irã, e numerosos interessados. A soberania do dólar é uma herança da hegemonia americana de 1945, hoje fragilizada e pouco realista. As propostas em discussão vão no sentido de um sistema internacional com várias moedas, mas por enquanto a limitação à soberania continua.
A soberania de um país depende também da sua capacidade de canalizar os recursos financeiros segundo as suas prioridades. A facilidade com a qual os recursos financeiros no Brasil são canalizados para paraísos fiscais torna qualquer tentativa de regulação muito precária. No Brasil o poder das corporações internacionais do agronegócio, ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus (ABCD), que controlam 80% do comércio de grãos, leva a que o país priorize exportações, enquanto 33 milhões de pessoas passam fome, e 125 milhões estão em situação de insegurança alimentar. A Índia, por exemplo, frente ao problema da fome, proibiu as exportações de trigo. O Brasil não só mantém a fome como isentou os exportadores de impostos (Lei Kandir, 1996), e os lucros e dividendos distribuídos são igualmente isentos de impostos (1995). O país é simplesmente drenado, inclusive com o Ministro da Economia escondendo milhões em paraíso fiscal (sob o nome código Dreadnaught). Ou seja, a opção de orientar os recursos para onde o país deles precisa, se vê muito limitada pelo sistema internacional de dreno. Em 2012 o Tax Justice Network estimou que o volume de capitais brasileiros em paraísos fiscais era da ordem de um terço do nosso PIB.
Interesses semelhantes atingem a autonomia energética. O fato do Brasil ter forte base hidrelétrica, e grandes reservas de petróleo, deveria assegurar independência no setor. Não se imagina a China, por exemplo, entregar o controle da sua base energética a corporações transnacionais. A Petrobrás, no quadro de um governo submisso a interesses internacionais, passou a cobrar preços absurdos no mercado interno – não há nenhuma razão econômica de se cobrar preços internacionais por um produto que é nacional – de forma a alimentar acionistas globais com dividendos elevados. Acionistas nacionais estão amarrados aos interesses internacionais, gerando travamento da economia pela elevação de preços da energia. Custos energéticos impactam numerosos setores. O processo pode ser encontrado nas diferentes privatizações: ao abrir acesso aos recursos do país pelos acionistas internacionais – por exemplo BlackRock, Glencore, Billiton e outros – com os seus aliados internos, perde-se a capacidade de usar recursos primários para financiar atividades industriais, ciência e tecnologia e semelhantes. Grande parte do legislativo depende de lucros indiretos obtidos pelo dreno de riquezas assim constituído. A privatização, na medida em que abre as empresas para compra de ações, significa desnacionalização. A Vale é um exemplo claro.
A independência cultural tem uma importância essencial. Mas a mídia comercial vive de publicidade paga em parte dominante pelos mesmos interesses. Quando vemos grandes jornais explicar que devemos pagar os preços internacionais por um produto que é da nação, é o próprio conteúdo jornalístico que é apropriado pela lógica corporativa e da ideologia norte-americana. É muito impressionante varrermos os canais de televisão para encontrar um filme decente, passando por uma sequência de conteúdos quase idênticos, norte-americanos, com aviso de “violência, sexo, drogas”. O mundo tem uma imensa riqueza cultural que não aparece. O vazio cultural criado não aparece como vazio, pois sequer o conhecemos. O uso político da religião nos faz olhar para os céus quando deveríamos olhar para as crianças que passam fome.
É importante entender que hoje o país perdeu grande parte da sua independência não por intervenções ou ameaças externas, mas pela constituição de elites internas que são “clientes” (no sentido de Estado clientelista) dos interesses externos. A dependência está enraizada na força das fortunas internas e dos seus representantes políticos. A perda de soberania tem poderosas raízes locais. Há conexões profundas entre a desigualdade explosiva, a miséria de tantos, a entrega dos recursos naturais, o endividamento generalizado da população, e a orientação geral da economia e da política. Há poucos anos o Brasil foi tirado do mapa da fome, hoje a fome se generalizou. O país tinha se industrializado.
Hoje apenas dois setores são pujantes na economia: a exportação de bens primários e a intermediação financeira, ambos ligados aos mesmos interesses de um mundo financeirizado. A chamada autonomia do Banco Central, tirando do governo ferramentas de regulação financeira, completa um quadro de entrega de soberania que hoje depende mais de quem manda no dinheiro do que de quem manda na tropa. Quando vemos quem se veste de bandeira do Brasil, não podemos deixar de ver a ironia.
O reverso da medalha é que voltar a desenvolver o país em função dos interesses nacionais, do interesse geral da população, envolve uma reorientação econômica profunda: eliminar a Lei Kandir, para que a alimentação sirva ao país que a produz. Voltar a cobrar impostos sobre lucros e dividendos, para que os ricos paguem um imposto como o paga a população em geral. Usar as receitas geradas para voltar a financiar a educação, a ciência e a tecnologia, a pequena e média indústria, a saúde, as políticas ambientais. A independência hoje significa colaborar com a comunidade internacional para enfrentar os dramas globais, construir uma sociedade mundial economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Colaboração construtiva, em vez de submissão. O que fazer não é mistério: voltar a usar os recursos em função do bem comum. Isso gera PIB, gera emprego, gera desenvolvimento, e sobretudo resgata a dignidade nacional.
Matéria publicada originalmente na revista Outras Palavras.
Ladislau Dowbor, é um economista brasileiro, de origem polonesa. É professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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