ISSN 2764-8494

ACESSE

Direito(s)
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Periferia, substantivo feminino

Gostaria de, neste texto, apresentar brevemente o conceito sujeito periférico, com o qual trabalhei em meu doutorado. Podemos afirmar que o conceito sujeito periférico quer dar conta de um fenômeno social caracterizado pelo(a) morador(a) da periferia, quase sempre jovem, mas não só, que passa a fazer um uso político do termo periferia, assumindo-o com orgulho, lutando contra os estigmas que recaem sobre ele, e, por meio de uma série de ações, incidindo sobre as condições de vida na própria periferia. Cabe reforçar que não é só no campo da arte e da cultura que atua um sujeito periférico.

No entanto, a produção artística da periferia foi o setor social que mais contribuiu para essa afirmação, sintetizando e dando vazão a pelo menos três grandes processos sociais que incidiram na formação dessa maneira de pensar e de agir sobre o mundo. São eles: a questão urbana propriamente dita; uma experiência comum compartilhada e; uma necessidade histórica de rompimento de mediações. Passemos a abordar melhor cada um desses três.

O conceito sujeito periférico

São Paulo é uma cidade desigual e segregadora. Uma série de indicadores sociais comprovam como a pobreza aumenta quanto mais afastado se está da região sudoeste da cidade, a mais rica. A distância da moradia com relação à região sudoeste incide diretamente nas possibilidades e oportunidades que as pessoas terão em suas vidas, devido à marcada desigualdade que existe na distribuição de recursos. Na região sudoeste está a maior oferta de empregos, o maior número de equipamentos culturais e também de universidades. Não é à toa que as sedes das grandes empresas de comunicação também se concentram nessa região, visto que é onde pisam os pés que a cabeça pensa o mundo.

Essa desigual distribuição dos recursos e dos equipamentos obriga moradoras e moradores da periferia a gastarem grande parte do seu tempo em deslocamentos urbanos. A maioria desses deslocamentos é realizado em transportes públicos, caros e de má qualidade. Assim sendo, a questão urbana, com suas distâncias e seus deslocamentos, é uma das experiências que irão moldar o sujeito periférico.

Um segundo processo social que formaria este sujeito periférico seria o de uma experiência social e histórica comum e compartilhada. Para este argumento, nos baseamos nas proposições do historiador inglês E.P Thompson, para quem a classe se faz por meio de experiências comuns e se forma em sua prática. Isto posto, o sujeito periférico se reconheceria enquanto tal por uma série de formas de agir e de ver o mundo mais ou menos próximas, derivadas da vivência em um ambiente social particular, qual seja, a periferia.

Esta possibilidade de enxergar o outro ou a outra como alguém que possui características sociais e históricas comuns daria sentido e sentimento de pertença a uma coletividade. Obviamente, esta experiência social e histórica comum e compartilhada está constituída de valores. Estes valores podem ser virtuosos, como a solidariedade, ou não, como o machismo que se perpetua. Adiante no texto voltaremos a tratar desta questão.

O terceiro processo social seria o fato de o(a)s morador(a)s da periferia terem iniciado um ciclo histórico de não aceitação de intermediários para dizer o que são ou como devem pensar. Esses intermediários podem ser as pesquisas acadêmicas formuladas por pessoas oriundas da classe média; as novelas e os filmes, hábeis em criar caricaturas; o mundo da publicidade e seus enquadramentos; a elite preconceituosa que segrega e criminaliza; certos setores da esquerda (fundamentalmente aqueles permeados pela pequena burguesia), que insistem em impor como a periferia deve agir politicamente sem viverem de fato o seu cotidiano.

Assim sendo, os sujeitos periféricos são aqueles e aquelas que tomaram a palavra para falar de si mesmos na esfera pública. A partir de sua posição na estrutura econômica e de sua condição geográfica e social, tornaram-se sujeitos (no duplo processo de donos e donas de seus destinos e de suas falas e de assujeitados e assujeitadas por uma dada condição).

Por fim, assumir-se como periférico foi uma maneira de criar um grande guarda-chuva onde entravam uma série de condições: negro(a) e branco(a) pobre; trabalhador(a) e desempregad(a); religioso(a) e ateu; mulher e homem; homossexual e heterossexual. Este grande guarda-chuva que abriga uma série de experiências, unificando-as, cria-se em contraposição a uma outra posição social: aquela dos boys e patricinhas, dos brancos ricos, da elite.

No entanto, dentro desse grande guarda-chuva unificador dos periféricos e periféricas, existem também desigualdades internas. Neste território social e geográfico, não é o mesmo ser branco(a) e ser negro(a); não é o mesmo ser trabalhador(a) e ser desempregado(a); não é o mesmo ser homem e ser mulher. Não é o mesmo ser heterossexual e ser homossexual. Se internamente à periferia há desigualdades, com evidentes hierarquias, cabe lembrar que a periferia também é o polo inferiorizado numa dada relação urbana e social. Assim sendo, periferia seria um substantivo feminino.

Mulher da periferia

Das marcadas diferenças sociais que se expressam no território urbano, é sobre a mulher periférica que recai a maior opressão, sobretudo a mulher negra periférica. Enfim, periferia é substantivo feminino, e a carne mais barata do mercado segue sendo a carne da mulher, negra, pobre e periférica. É a mulher encoxada no busão e no metrô nos intermináveis trajetos; é a mulher que é obrigada a andar com medo por ruas escuras dos bairros populares, ao chegar tarde em casa do trabalho, da faculdade, do rolê ou da reunião política. É a mulher obrigada a cumprir a tripla jornada cotidiana, de trabalho, casa e cuidados com as crianças, muitas vezes sem contar com a ajuda do companheiro.

Neste ponto, cabe ressaltar o papel da maternidade entre as mulheres da periferia, que, sob as condições mais difíceis, criam filhos e filhas. Na luta cotidiana pela própria sobrevivência e pela sobrevivência da família, rompem com machismos e opressões. Em paralelo, cabe ressaltar o papel da gravidez na adolescência entre jovens das classes populares. Ao passar da posição de menina à posição de mãe, estas jovens buscam afirmar-se socialmente em um mundo que constantemente as reprime e as invisibiliza.

Mãe, filho, pai?

A figura da “mãe” na vivência periférica é um capítulo extenso, seja pelo fato de muitas delas serem figuras importantes e provedoras, e que dão unidade a complexas formações familiares; seja pela afirmação social ansiada pela adolescente-mãe; seja pela importância da mãe para os homens (fundamentalmente os jovens) periféricos. Na recorrente ausência de um pai, a mãe é provedora e protetora, e, para além disso, em uma certa construção simbólica (que não pode ser generalizada a toda a periferia, mas que certamente é bastante presente), é a única mulher em que se pode confiar.

Em minha tese de doutorado, realizei uma discussão acerca da obra do grupo de rap Racionais MCs, tratando-a como a narrativa legitimada do que seja viver na periferia. Homens do seu tempo e do seu espaço, e mesmo sendo verdadeiros intelectuais orgânicos da periferia (e a quem o pensamento periférico deve muito), os rompantes de machismo nas letras dos Racionais são evidentes.

Em livro sobre o assunto, intitulado A Frátria Órfã, a psicanalista Maria Rita Kehl aborda a questão. Baseada na obra dos Racionais, a psicanalista afirma que as mulheres são uma ameaça à irmandade masculina, jogando homens contra homens, irmãos contra irmãos. Neste quadro, somente a figura feminina representada pela mãe se salvaria, pois esta (observada a partir de uma representação que a cataloga como assexuada) protegeria a todos.

No entanto, como diz o título do livro, muitas vezes a frátria está órfã, sem pai, sem mãe, ou, e aqui sou eu quem escrevo, sem um discurso orientador de suas práticas e de suas perspectivas políticas, o que também seria uma espécie de orfandade.

Machismo popular e machismo burguês

Nesta rede de irmandade e proteção masculina, visível em alguns espaços periféricos, assim como as mulheres podem ser uma ameaça, a orientação sexual não hegemônica também o é. Desse modo, a homossexualidade masculina tem dificuldade de se expor em um ambiente onde a virilidade é quase sempre um valor. A homossexualidade feminina tampouco é bem vista. Ser um homem sensível, porém heterossexual, também é escapar do normativo.

Das muitas diferenças entre formações sociais mais comunitárias e formações sociais mais individualistas, está a eterna dialética entre a liberdade e a segurança. Em grandes traços, em bairros periféricos, instituições como família, vizinhança e redes de solidariedade fazem-se indispensáveis para a sobrevivência material dos indivíduos. Neste ambiente de inescapável necessidade e dependência, as pessoas se ajudam mais e, consequentemente, o controle é maior. Certamente, este controle incide sobre as economias afetivas, e fundamentalmente sobre as mulheres.

No polo oposto (entendendo que existem variados matizes entre um polo e outro), o individualismo burguês, baseado na possibilidade da auto-suficiência material, tende a prescindir da ajuda mútua. Neste ambiente, diminuem-se as necessidades de redes de solidariedade e de autoproteção, e, de certo modo, usufrui-se com mais autonomia de liberdade de escolha e privacidade no âmbito afetivo, ao menos nos setores mais progressistas da burguesia. Cabe ressaltar, no entanto, que o mundo de modos e mediações propalado pela burguesia tende muitas vezes a sutilizar seu machismo, enquanto o machismo dos bairros populares é mais escancarado.

Machismo: uma exclusividade periférica?

Ainda assim, neste ponto do texto gostaria de fazer uma inflexão, para não reproduzirmos o argumento de que o machismo cavernícola é uma exclusividade periférica. Certa vez, ao assistir uma belíssima obra teatral que denunciava a violência contra as mulheres e o machismo, perguntei a diretora por que todas as canções utilizadas como exemplo eram sambas. A diretora, cabeça pensante da classe teatral progressista paulistana, não soube responder.

Inteligente que é, possivelmente tenha apenas se deixado levar pelo senso comum, que facilmente busca o samba, o rap e o funk na prateleira da enunciação do criticável, como se estes gêneros musicais fossem os únicos a serem machistas (não à toa são gêneros populares). Pergunto: acaso o machismo não está presente nas obras canônicas que emolduraram o pensamento burguês das sociedades ocidentais contemporâneas? O machismo não está nos libretos das óperas? O machismo não está presente na Bossa Nova?

Pergunto: a rede de proteção e irmandade entre homens (todos pertencentes à elite econômica brasileira) não teria se expressado nos discursos asquerosos dos congressistas dos partidos de direita, no dia da votação do impeachment de uma mulher que representa uma ameaça: Dilma Rousseff? O fato da presidente ser mulher não provocou uma ferocidade muito maior no discursos enunciados por políticos, por empresários e pela mídia burguesa?

Se fosse um homem o alvo de ataques (Fernando Collor, por exemplo), preponderaria o espetáculo sexista que temos presenciado? Era ou não machista a ironia da frase “tchau querida”? Foi impressão, ou todas as vezes que uma deputada falava ao microfone, os deputados presentes expressavam desdém e escárnio? O que dizer da homofobia contra Jean Willys?

A opressão sobre as mulheres, o machismo, o patriarcalismo (assim como o racismo) são processos sociais anteriores ao capitalismo. Todavia, coadunam-se a este modo de produção, que se expressa na divisão da sociedade em classes sociais e em uma marcada divisão social do trabalho. Desse modo, não vamos esperar a revolução socialista para combater o machismo, o racismo e seus correlatos. Há muito a se fazer. Todos os combates se entrelaçam e se realizam desde agora, contra formações sociais que silenciam, oprimem, exploram e reprimem a classe trabalhadora, as negras e negros, as mulheres, os periféricos e as periféricas, os homossexuais e as homossexuais.

Bebemos na fonte de lutadoras e lutadores que empreenderam esta batalha no passado e semeamos estas experiências às gerações vindouras. E que no hoje, no aqui e no agora das relações concretas, mulheres periféricas e homens periféricos sejam livres para usufruírem de suas orientações e de suas escolhas sobre como querem viver suas vidas sexuais, afetivas e amorosas.


Tiaraju Pablo D’Andrea é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Campus Zona Leste/Instituto das Cidades. Coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos). Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Também é músico com dois álbuns gravados: Capacetes Coloridos (2008) e Latinoamerisamba (2015).

Essa matéria foi publicada também na revista Geni. (adaptada)

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