ISSN 2764-8494

ACESSE

Socioambiental
Seu tempo de leitura: 9 minutos

Notas para uma revolução agroecológica

Por Moro Maxwell

O dano e o paradigma da erosão

Todos já sabemos que vivemos, como humanidade, um momento de crise generalizada e, provavelmente, terminal. Porém, nem a mídia nem os governos agem de acordo com esse conhecimento, que agora faz parte do senso comum. O que estamos esperando?

Nesse ponto, apenas dois caminhos surgem no horizonte: ou desdobramos nossa capacidade de gerar mudanças em toda a sua magnitude, ou caminhamos decididamente para nossa autodestruição. Supõe-se que somos uma espécie inteligente, mas levamos o planeta a um extremo de devastação que põe em perigo nossa própria existência como espécie. Tem sido difícil para nós perceber que na realidade não somos os inteligentes do sistema, mas fazemos parte de um sistema inteligente que foi desestabilizado pela nossa intervenção.

O atual desequilíbrio do ecossistema, que vem causando um sofrimento generalizado, não é natural. Pelo contrário, é o resultado do sistema de produção capitalista, que não considera a saúde da Terra ou dos seres vivos que a habitam, mas privilegia, acima de tudo, o acúmulo excessivo de riqueza em poucas mãos. A agricultura industrial baseada na monocultura, o desmatamento, a mineração, a infraestrutura urbana e energética, são alguns dos fatores responsáveis ​​pela atual crise sistêmica, que mantém comunidades inteiras sem água, sem alimentos saudáveis, ou condições necessárias para uma vida digna.

Há uma consciência cada vez mais difundida de que uma mudança de paradigma é urgente, deixando para trás a ideologia do progresso e da dominação sobre a natureza (a nova cosmovisão pode ter vários nomes, embora em substância apontem para coisas semelhantes, mas com ênfases diferentes: revolução agroecológica, feminismo , biologia cultural, permacultura, cultura regenerativa, descolonização, cura holística, educação na natureza), mas isso ainda não está refletido nas estruturas políticas, jurídicas e institucionais.

Nossa civilização, que levou ao colapso dos ecossistemas, precisa iniciar um processo de decrescimento econômico. Não é mais possível sustentar um nível de consumo como o adquirido pelos países desenvolvidos e pelas classes abastadas dos países periféricos. São necessárias uma reconversão econômica e uma revisão das práticas que se têm instalado como indiscutíveis e necessárias ao desenvolvimento de nossas sociedades.

Laptops descartados, lixão de Agbogbloshie, em Accra, Gana.

Uma dessas práticas é a mineração extrativista, que gera grande poluição ambiental e destrói ecossistemas. Toda mineração industrial está baseada na extração irracional e intensiva de bens comuns para aumentar o lucro privado, destruindo nichos ecológicos e poluindo as águas. É preciso acabar com a megamineração e a mineração a céu aberto, para caminharmos na direção de uma “mineração do essencial”, com menor impacto socioambiental.

Outra prática instituída pelo grande capital em nossos campos, que não leva em conta o maléficos e tóxico dos seus resultados, é a monocultura de espécies vegetais, que destrói a biodiversidade e introduz venenos nos sistemas naturais (agrotóxicos, herbicidas e fertilizantes sintéticos). Essas práticas são típicas de uma civilização em erosão, que já mostrou seu esgotamento, sua eficiência no curto prazo em troca de uma ruína duradoura e difícil de reverter.

Todos nós podemos perceber, especialmente após eventos climáticos extremos, como aquecimento global, secas, inundações, incêndios e muitos outros “desastres naturais” (causados ​​pelo nosso modo de vida), que não estamos separados da natureza, mas fazemos parte dela. É preciso transformar a perspectiva utilitária, que fez da natureza um recurso a ser explorado, ou um meio de acumular riquezas, em uma relação harmoniosa, entendendo que a natureza somos nós mesmos, é o nosso corpo orgânico.

A resistência

Quando defendemos a natureza, estamos exercendo autodefesa, como fazem as comunidades indígenas em resistência. A natureza tem inteligência, é um organismo vivo; ao cuidarmos dela, também recebemos algo em troca, por sermos com ela. Se não vemos esta interdependência é porque perdemos as nossas raízes, esquecemos de onde viemos, o que tem causado, tanto nela como em nós, um dano muito grande e por muito tempo. Daí a urgência de cuidar do ar, da terra, da água doce, do mar, das sementes, e de dar uma solução definitiva e eficaz ao problema do lixo e da poluição. Temos o direito de viver e crescer em um ambiente saudável, mas também temos a responsabilidade de fazer com que esse mundo seja possível, derrotando os impulsos de morte da sociedade capitalista.

É importante desenvolver um pensamento sistêmico que nos permita ver o que está acontecendo em nível global e microscópico, e tomar medidas que tenham impacto em ambas as dimensões. Não se trata apenas de fazer justiça aos explorados e vilipendiados na história, é também necessário regenerar, curar a terra e nossas relações sociais, processo que é um e o mesmo, iniciando a caminhada de economias do cuidado em todos os níveis.

Uma justiça restaurativa não deve apenas defender a natureza, mas também restaurá-la. Isso implica que devemos não apenas fazer mudanças em um nível superestrutural, mas também revisar os hábitos de consumo que mantemos em nosso cotidiano. Vivemos em uma sociedade que incentiva o desperdício, a poluição, o individualismo e a alienação. Os efeitos dessa cultura tóxica nos isolam da ordem natural e até fissuram nossos laços humanos.

São múltiplas as expressões de resistência ao atual padrão cultural e produtivo, a começar pelos usos e costumes dos povos indígenas em todo o mundo; existem formas alternativas de economia solidária, comércio justo; existem redes de apoio mútuo, moedas não capitalizadas, bolsas de sementes, feiras de trocas, etc. É preciso aprender com essas experiências e aprimorá-las, porque são elas a resposta aos nossos problemas. É a isso que se referem os povos originários quando nos falam do Sumak Kawsay (quíchua), Kvme Mogen (mapudungun), o bem viver: para finalmente compreendermos que o bem da comunidade tem como consequência o bem de cada uma e cada um.

Nesse sentido, é fundamental que a riqueza das nações seja distribuída de forma equitativa, sem gerar bolsões de pobreza ou zonas de sacrifício. Não podemos permitir que existam setores descartáveis ​​da população, nem marginalizados nem famintos. Para erradicar esta situação, é fundamental que todas e todos tenhamos os mesmos direitos. Um deles, talvez fundamental, é o direito a uma educação de qualidade, que nos permita pensar, tomar decisões sobre o que está acontecendo em nosso meio e agir de acordo, de forma informada. Portanto, é urgente garantir o direito à comunicação, a partir de um ecossistema midiático que não fomente o medo, a desinformação e o consumo, mas que permita o acesso à cultura e ao conhecimento. A comunicação é a base do entendimento e da ação, e não pode ser privatizada.

A política e as instituições

No caminho para a descolonização, teremos que encontrar novas formas expressivas que dêem conta da mudança de paradigma. Isso implica uma renovação da linguagem, carregada de conteúdos patriarcais, racistas, de classe e especistas. O abuso epistêmico deve ser erradicado, dando lugar ao reconhecimento daqueles saberes que hoje permanecem subalternizados.

Nosso país não está alheio à crise da institucionalidade que se vive no mundo todo. A corrupção, presente em todos os níveis, ameaça com o total descrédito dos governos e de suas formas de representação. Por isso, é urgente que a política volte à sua modalidade participativa, fortalecendo instâncias locais de toma de decisões, à escala comunitária, assumindo daí o controle da vida e a fiscalização das instituições maiores, que deveriam ter apenas uma função de coordenação.

No Chile, as políticas voltadas para o mundo rural têm prejudicado a vida da natureza, o que tem sido feito (e continua a ser feito) na agricultura é aberração. Há cinquenta anos, as instituições que configuram as políticas agrícolas, como o CONAF ou o INDAP, buscam beneficiar a grande indústria da monocultura agrária, com tudo o que isso significa. Tornaram-se instituições tóxicas, no sentido literal (envenenaram a terra), e no sentido metafórico, pois fomentaram a expansão de grandes propriedades, destruindo comunidades, pequenos agricultores e projetos cooperativos.

Será necessário refundar as instituições voltadas para o mundo da agricultura sob os princípios da agrossilvicultura regenerativa, permacultura e sintropia. Além de promover o cultivo regenerativo em terras que há décadas são utilizadas para monocultura e pastagem intensiva. O corte da mata nativa deve ser interrompido imediatamente, o que está sendo feito hoje com total impunidade. Na verdade, os grandes latifundiários não podem realizar nenhuma atividade em suas propriedades, pois o que fazem impacta a todos nós e afeta o equilíbrio planetário. Eles deveriam reflorestar as terras que exploraram até a exaustão e depois abandonaram.

A propriedade da terra

Se o equilíbrio hidrológico e climático tem uma chave, é o reflorestamento do planeta. No entanto, e no que diz respeito ao nosso país(*), este objetivo esbarra inevitavelmente na vontade do Estado e na indolência dos latifundiários. Por isso, é urgente uma Reforma Agrária Regenerativa, que permita o acesso das comunidades à terra.

É importante reduzir a grande propriedade privada da terra, favorecendo modelos regenerativos em menor escala. Ou seja, iniciar uma transição socioeconômica em chave agroecológica: repensando a produção agrícola, em direção à agricultura familiar, com respeito aos ciclos dos ecossistemas, e que aplique a memória ancestral de manejo das fontes de vida (água e sementes).

Para tanto, deve ser protegida, em termos jurídicos, a figura da posse comunitária da terra, onde as comunidades podem desenvolver projetos de regeneração do solo, reflorestamento e produção de alimentos, à maneira de ecovilas rurais, e avançar rumo à autonomia territorial. Com essas transformações, o trabalho voltaria a ganhar importância, dessa vez como trabalho agrícola, voltado para a recuperação dos ecossistemas. Enquanto os assentamentos humanos, deixando para trás o conceito de grande cidade, são incorporados a uma cadeia regenerativa e produtiva em nível local, sendo uma contribuição ao ecossistema, e não uma fonte permanente de gastos, participando do equilíbrio planetário. Tornando-se assentamentos humanos que exercem justiça restaurativa.

Também deveria ser incentivada, como tem acontecido na Rússia e em outros países, a redistribuição de terras para famílias ou indivíduos cujo objetivo seja o de restaurar o equilíbrio ecológico em terras que foram danificadas e desmatadas, na forma de lotes familiares produtivos e restaurativos do solo, e aos coletivos que desejem contribuir para a produção alimentar, de forma a criar o apoio territorial para a soberania alimentar.

Existe um conceito que é usado na permacultura para nomear a interação que ocorre no subsolo entre as raízes das plantas, onde uma a outras fornecem os nutrientes necessários: o da simbiose. Frequentemente, uma planta libera nutrientes apenas quando sua vizinha precisa deles, e isso requer diversidade de espécies. Este conceito também pode ser aplicado à nossa realidade social: não podemos mais fingir que sobrevivemos como indivíduos, para existir precisamos da nossa comunidade de pares, plantas e animais. Sem uma simbiose social, estamos condenados à extinção.

Sistema agroflorestal no Sitio duas cachoeiras na Serra da Mantiqueira

A revolução agroecológica

Uma revolução agroecológica deve conquistar direitos sociais para a natureza, entendida como sujeito de direitos intrínsecos: a água, entendida como ser vivo, deve ter seus direitos; mais os direitos das plantas e animais que habitam a terra conosco. A água deve ser entendida como um bem comum inapropriável, não como um bem nacional de uso público. A água, como as sementes, não pode ser propriedade de ninguém, pois são geradoras de vida, devem ser destinadas ao bem comum. Nesse sentido, sua desprivatização e a revogação do atual código de águas (DL72-1) são importantes. Geleiras, pântanos, rios, estuários, lagos, canais e outros corpos d’água devem ter direitos, pois a água é o nosso próprio corpo.

Ao mesmo tempo, é preciso promover projetos de propagação da biodiversidade, apoiando bancos de sementes e de genes de vegetais, espécies nativas e exóticas, como fazem as culturas ancestrais há séculos.

As transformações sociais que terão de ocorrer para banir o paradigma da erosão encontrarão resistências nessa mentalidade que prefere o lucro a curto prazo e o enriquecimento a qualquer custo, indo contra toda e qualquer ética. Não será fácil, e é preciso estarmos atentos, apoiando e protegendo organizações, povos e pessoas que defendem as florestas, a fauna nativa e a natureza, porque, em muitos casos, essa dedicação a uma causa desse tipo tem custado a própria vida a muitos deles. E talvez a melhor proteção que possamos dar aos guardiões da natureza seja erradicar para sempre do nosso país a cultura da impunidade.

A mudança cultural (ou paradigma), sem dúvida, promoverá novos fenômenos sociais, como uma migração da cidade para o campo (um processo que já está em andamento), mas que, à medida que se tornar massivo, deve ser integrado a um planejamento descentralizado, que deveria ser reforçado por escolas, que promovam uma educação na natureza.

Essas mudanças podem ser simples, se todas as ferramentas do Estado, as tecnológicas e a vontade política de quem afirma nos representar forem colocadas à sua disposição. Os movimentos sociais de defesa da vida, conscientes dos prejuízos que o modelo capitalista e neoliberal gerou, estão presentes em todo o território, mas devem crescer e se consolidar como poder territorial, avançando no caminho da autonomia. Para isso, é preciso avançar não apenas na soberania alimentar, mas também em uma matriz de soberania energética dos territórios: gerar energia própria e limpa, fazendo gestão comunitária.

Uma boa experiência no Chile seria destinar as terras inúteis que hoje estão nas mãos das Forças Armadas para criar novos povoados agroecológicos, que permitam colocar em prática lições que sirvam para desenhar uma futura reforma agrária.

Se houver futuro, sua pedra fundamental serão os assentamentos humanos autossuficientes e ambientalmente responsáveis. Pequenos passos não são mais suficientes, pois carregamos gerações de abusos, que exigem processos de transformação amplos e imediatos. O planeta está nos pedindo de várias maneiras para agirmos com urgência. A Terra tem uma grande capacidade de regeneração, mas neste momento precisa da nossa ajuda: reflorestar, recuperar os corpos d’água, curar suas paisagens e dar exemplos positivos que nos permitam continuar habitando este planeta, esperançosamente, por muito tempo. Nosso modo de vida deve ser eficiente, mas minimalista, e sua base deve estar na agricultura natural.

Hoje, grande parte do meu país está atenta ao processo constituinte, alimentando esperanças nos seus resultados, na expectativa de que sejam levadas em conta considerações como as que aqui resumimos. Talvez esse Poder Constituinte, diante do momento crítico que vive nossa civilização, devesse se tornar um quarto poder do Estado, permanentemente preocupado com a crise global, implantando órgãos vigilantes e proativos em nível territorial, e articulando uma Assembleia Permanente em diálogo com os ecossistemas.


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Esse texto foi traduzido para o português por @claubarria e está disponível na versão original em espanhol.


* Moro Maxwell é escritor, músico e sociólogo chileno, durante o regime pinochetista no Chile foi dirigente estudantil.

Imagem da capa: Foto de divulgação do Pretaterra, disponível na web.

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