“O sertão vai virar mar e o mar” a Amazônia, uma grande savana… e Tuvalu, a mais nova Atlântida. Pesadelo, mito, premonição ou alerta científico? Samyra Crespo conta sua história sobre o movimento ambientalista brasileiro.
Uma dupla perspectiva
Inegavelmente, o título do livro já é um convite: “Conta quem viveu, escreve quem se atreve. Samyra Crespo, a autora, é uma ambientalista de primeira hora, parte da turma que, já no início dos anos 90, não ousava subestimar os alertas que vinham sendo dados desde a primeira Conferência do Meio Ambiente, na capital sueca, em 1972. Editado pelo Instituto Envolverde, do jornalista e ambientalista Dal Marcondes, o livro de Samyra, que por enquanto pode ser acessado apenas pela internet (aqui), preenche uma importante lacuna sobre a história do meio ambiente no Brasil. Entre muitas funções, Samyra esteve no segundo escalão do governo Lula, em 2008, como Secretária de Relações Institucionais de Meio Ambiente e Cidadania Ambiental e foi presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Inesperadamente, recebi o livro em minha caixa de mensagens, junto com um convite simpático, para participar da roda de conversa online do lançamento. Abri o arquivo do livro na manhã de segunda-feira, comecei a lê-lo e só consegui fechá-lo depois de ter passado e muito das 300 páginas (o livro tem 378).
Todavia, o texto é leve, as frases deslizam, as histórias são contadas com simplicidade, mesmo as que desvelam situações delicadas. Mas, não foi só o estilo que me pegou de jeito.
Contextualizando
Samyra mistura sua vida pessoal aos relatos da ambientalista, o que aproxima a(o) leitora(o) que viveu, como ela, um tempo em que os jovens tinham “roupa de sair e de ficar em casa, três a quatro pares de sapatos. Jeans eram artigos de luxo e chamados de calças Lee.”
Afinal, nossa geração – temos apenas dois anos de diferença – não viveu na pele os terrores iniciais do regime militar. Mas, como crianças, sentimos os efeitos em casa, na escola, em nossa rotina.
“Quando veio o golpe militar, num mês de março bem frio, lembro que não fomos à escola. A manchete era “o governo caiu”, e depois “intervenção militar”. Não dei a mínima. Estava imersa na leitura da história de vingança do Conde de Monte Cristo, e fiquei contente por ter aquela súbita folga na rotina”, conta ela.
Contudo, os horrores vieram depois, com o desemprego do padrasto, um homem ligado à cultura, o que obrigou a mãe a trabalhar. Samyra também precisou ir à luta: começou a trabalhar aos 14 anos, na própria escola, já envolvida com livros e pensamentos.
“Tomei conhecimento de que a barra estava pesando para quem se opunha ao golpe”.
Sobretudo, Samyra vai puxando o fio da memória e não deixa o leitor se afastar do relato. Quando conta o momento em que começou a se envolver com a política, em parte levada por um namorado militante do Partido Comunista, Samyra mergulha o leitor no tempo das utopias, “que nasce como uma resposta desesperada à opressão”.
E por que ecologia?
Primeiramente, o interesse pela ecologia foi pela pauta urbana. Em 1984, Samyra Crespo muda-se de São Paulo para o Rio de Janeiro e se depara com uma cidade que considera fedorenta, atrasada:
“As garotas podiam ser douradas e lindas com short e rasteirinhas, mas as praias eram poluídas e a areia imunda. A Lagoa Rodrigo de Freitas fedia e era o quintal de seus moradores. Podia-se pegar hepatite na areia (e houve mesmo surtos da doença em alguns verões) ou bicho geográfico, além de outras doenças, devido à presença de cães disputando com as crianças o espaço. A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) já era uma caixa preta. Os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) eram monumentos fracassados a uma educação integral e integrada, sonhada por Darcy Ribeiro”, conta ela.
Sob o mesmo ponto de vista, Samyra pegou com a mão o desejo de mudar isso e se aliou às elites dirigentes, intelectuais e lideranças populares. Foi quando ela conheceu a distopia:
“Munidos de nossas utopias e das melhores intenções, mergulhamos no mar sujo e fizemos piscinões. Mas cadê o nosso sucesso menos de três décadas depois? E o que deu errado? O que ficou pelo caminho? E o que foi que não vimos enquanto seguíamos tão voluntariosos e confiantes?”.
Conforme o envolvimento com a política, depois do sonho, então não realizado, de ter um operário na presidência, Samyra entrou de cabeça na ecologia. O ano de 1992, que marcou o mundo dos ambientalistas por causa da Conferência Rio-92, também marcou a vida de Samyra. Ela trabalhou nas entranhas daquele megaevento, revela bastidores e convida o leitor a ter uma visão realista do movimento.
Entrevista com Samyra
Ademais, vou parar de dar spoiler do livro e contar que, depois da live de lançamento, eu marquei uma entrevista com Samyra Crespo. E conversamos ao vivo (a entrevista foi publicada no site G1 sob o título ‘Vamos chegar à COP26 como um fantasma triste’, diz a ambientalista Samyra Crespo), atualizamos algumas histórias. Tomamos um café – finalmente!
Depois de tanto tempo – eu, ela e o fotógrafo Marcos Serra, que me cedeu a foto de bastidor da entrevista que está aqui publicada. Revivi a delícia de ser repórter e compartilhei algumas angústias sobre o momento em que chegamos sobre as questões climáticas.
Enfim, de 1992 para cá, apesar de tudo o que já foi dito, de todos os alertas feitos pelos cientistas, de todas as boas intenções dos empresários… as questões climáticas ainda são o maior desafio da humanidade. É só ter acesso ao último relatório do IPCC, em que os cientistas avisam que a Amazônia vai virar uma savana ainda neste século.
A COP26, que aconteceu em Glasgow, na Escócia, ainda estava bem no início quando Samyra e eu conversamos. Já no final da primeira semana, o que temos é quase o mesmo das últimas conferências do clima: promessas de líderes e cobranças da sociedade civil.
Portanto, uma cena chamou minha atenção: a do presidente de Tuvalu, que fez seu pronunciamento dentro do mar, com água pelo joelho. Tuvalu é uma das nações-ilha do Pacífico e sua situação é um emblema do que está para acontecer com o mundo: são doze mil habitantes que precisarão ser resgatados porque a água do mar vai fazer desaparecer seu país.
Certamente, ainda há tempo de salvar, dizem os especialistas. E vamos acreditar nisso.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora voluntariamente na Revista Colaborativa Pluriverso e na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Kangen.cc.
Matéria publicada também na Revista Entrenós
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