O Ser, o Saber e o Poder no sistema-mundo moderno/colonial têm a sua História contada pelas tuas leis e pelas tuas instituições, e os livros que aprendemos a venerar relatam os heróis que se fizeram tais pelo teu olhar. Nunca nos viste e, hoje, incrédulo e atordoado pela cegueira do teu poder, sentes no ruir do teu orbe, o clamor do nosso potente canto improvável…
Tu que professas verdades, que falas a língua dos deuses, que vens nos ensinando, por todos os meios, com o lápis e o fuzil, com a fé e o punhal, que somos apenas eternos aprendizes da tua sabedoria, apenas reprodutores da tua grandeza, eternos subalternos desprovidos do espírito civilizatório que alimenta a essência do Ser, na monocorde plêiade do Deus branco que não dança;
Tu, portador das luzes que nos iluminaram e com as quais deveríamos iluminar os outros,
ali onde disseste pureza, nós dissemos mistura,
onde ensinaste a louvar a perfeição, aprendemos a amar o erro e o acaso,
enquanto defendias o ideal, aprendíamos a nos fazer humanos no chão,
onde disseste rigor, demos a ele outro tom a partir do inesperado,
onde colocaste normas, as humanizamos dispersando o tempo,
onde impuseste Apolo
escolhemos a dança de Exu com o Curupira e todos os orixás,
onde nos ensinavas a respeitar os direitos da “Pessoa Humana”, aprendíamos, sob o chicote e o olhar inquisidor de teus vassalos, que a dignidade pouco tem a ver com essa tal pessoa humana que desconhecemos, mas com o pão nas nossas mãos, a terra sob os nossos pés, o trabalho coletivo dos nossos, pelo qual nos fazemos e reinventamos, como a água que volta ao leito do seu rio trazendo os frutos da própria pescaria;
ali onde nos ensinaste e impuseste a tua monocultura religiosa, científica, filosófica, moral, ética, econômica, social, corporal e étnica, crescíamos teimosa e sub-repticiamente múltiplos, diversos, pluriversais, como filhas e filhos do Sol.
Tu, que negaste as nossas línguas e as definiste como “bárbaras”;
Denunciamos aqui a tua ciência como o ardil da ordem espúria dos pretensamente puros.
Assim, nas nossas indagações e diálogos, no nosso fazer criativo, haveremos de preferir caminhar no obscuro a continuar achando apenas aquilo que pode ser visto onde as luzes estão;
Nós, do sul, los de abajo, les damné de la terre, os condenados do sistema, nós, los nadies, impuros, diversos, confusos e apaixonados,
somos a sombra que a luz da modernidade projetou, somos a vida que ela, sem vê-la, por enxergá-la sempre ‘menos’, subalterna,
somos o silêncio milenar que, transfigurado em grito, anuncia um novo-ancestral.
(*) Este poema manifesto foi originalmente publicado como prefácio à Tese de doutorado Pela poética de uma pedagogia do Sul, que busca na estética e na memória da cultura rebelde da nossa América elementos para se repensar a educação em clave descolonial.
Claudio Barría Mancilla é Arte Educador, músico, diretor de Arte na Kangen, Doutor em Educação, Pesquisador do NIRA/ UERJ, e membro do Coletivo Pluriverso. Acesse aqui outras matérias do autor na Pluriverso.
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