Crer na pessoa. Acreditar na pessoa humana e em seu destino e desafio de fazer-se mais humana ao longo de cada vida individual, e ao longo da trajetória do Ser Humano no Planeta Terra.
Quem quer que seja, qualquer ser humano é, em si mesmo e com ou sem mediações, o ponto de origem, o valor de sentido e o destinatário de uma educação vocacionada não a capacitar o indivíduo competente e competitivo para o mercado, mas sim a pessoa consciente e cooperativa para a partilha da vida social e para a permanente transformação do mundo de vida em que vive.
Qualquer que seja o estilo de um governo e a vocação de uma sociedade, a pessoa humana é sempre o seu sujeito e a sua razão de ser. Cada uma, cada um de nós somos autores, atores e portadores de um valor irredutível em si mesmo. Assim, todos os projetos e todas as políticas sociais devem ter em cada pessoa e todas as pessoas de um povo ou de uma nação o seu ponto de origem e o seu lugar de destino.
A pessoa humana e nunca um poder de estado, o mercado ou qualquer coletividade imposta a ela, é o sujeito essencial da vida, da sociedade e da educação. Dirigida a promover transformações emancipadoramente humanizantes, a educação deve centrar no desenvolvimento humano, e não no desenvolvimento econômico ou em qualquer outro, o eixo e o destino de sua ação pedagógica.
Crer no valor do trabalho de quem educa
Em um momento do mundo em que em nome de novos aparatos e neo-ofícios eletrônicos e humanos voltados a transformar o trabalho de quem educa para a vida e o trabalho, na mera instrução de quem apenas instrui para o mercado, mais do que nunca é preciso crer em nós, crer em nós mesmos. Crer em nós: educadoras/educadores.
Um dos fundamentos da educação deve ser a crença substantiva em nós, em nós-mesmos e no “entre-nós” que solidária e ativamente criamos quando nos unimos e quando, em nome de nosso trabalho como educadores, compartimos vidas, destinos, saberes.
Somos educadores porque somos semeadores do saber e da solidária partilha do saber. Somos seres da esperança, porque não podemos deixar de acreditar em quem educamos e não sabemos descrer do sentido do que, juntos, praticamos como educação.
Porque acreditamos que todo o saber solidariamente construído e livremente partilhado é um fundamento pessoal e social da liberdade.
Não somos educados para nos subordinarmos a uma ordem social imposta a nós, e colonizadora de nossos saberes, significados, sensibilidades e sociabilidades. Mutuamente nos ensinamos-e-aprendemos para sermos, em cada pessoa e em nossas autônomas e solidárias coletividades, os agentes de transformação de nossas vidas e de nossos mundos de vida.
A educação em que devemos crer e que devemos praticar, não objetiva somente instrumentalizar, funcional e pragmaticamente seres sub-humanizados para o mercado de trabalho. Ela aspira ir além até mesmo do apenas formar pessoas “em sua eminente dignidade” como senhores de direitos e sujeitos de deveres sociais.
Ela se propõe como uma ação social crítica e criativa, livre e insurgente, destinada a formar pessoas e coletividades como atores inconformados, e como agentes ativos entre processos crescentes e perenes de liberdade pessoal e de emancipação social.
Instâncias do poder de estado ou outros podem supletivamente associar-se ao trabalho emancipador de atores e autores pessoais e coletivos de emancipação. Mas cabe a nós e a não a qualquer outra instância pretensamente “superior” a pessoas e a coletividades de pessoas livres, a tarefa de construir, conduzir e consolidar práticas de emancipação contra-hegemômica.
Crer na história como uma perene construção dos seres humanos
Mais do que nunca precisamos hoje reaprender a acreditar que não vivemos apenas uma biografia pessoal. Cabe a nós o desafio de sermos os construtores das histórias sociais em que vivemos e que criamos a cada dia.
A despeito de todas as teorias que acreditam ou apostam no fim das ideologias de transformação de pessoas e mundos, e que decretam o fim da história humana e de seu sentido, devemos crer em nossa vocação individual e coletiva como seres não apenas “na história” ou “da história”, mas como coparticipantes de cada momento de construção de nosso tempo na história. Crer na história e no sentido convergente, personalizante, socializante e espiritualizante da história humana.
Somos de fato autores e atores de nossas vidas e destinos.
Sejamos aqueles e aquelas a quem compete não apenas “seguir o curso da história”, ou simplesmente dedicar-se a estudá-la e criar boas “narrativas” sobre o seu real ou ilusório acontecer, mas as pessoas destinadas a vivê-la como a mais difícil experiência coletiva a ser construída: a nossa história.
Devemos acreditar, como educadores, que possuir um sentido de origem nos desafia a um trabalho de solidária construção da trajetória da aventura humana na Terra, que há milhões de anos nos fez descer de árvores e, passo a passo, entre tropeços e acertos, no fez chegar a este momento que historicamente compartimos.
Saibamos crer e dialogar a evidência de nossa vocação ao exercício solidário de uma perene transformação sempre mais humanizadora da vida e da história como o “sinal de nascença” e a assinatura de identidade do ofício de educar.
Através de seus serviços a quem educa, a comunidades e movimentos sociais, ela deve ser vivida como uma alternativa a mais em um processo integrado, interativo e socialmente radical de transformação das estruturas de poder, de gestão da economia e de vida coletiva de nossas sociedades ainda colonizadas pelo poder do capital e do mundo da mídia e do mercado.
Mais do que talvez em outras eras da história, vivemos um momento de transição em que nossas ideias, ideais e práticas dirigem-se a um simples efeito de regulação do “sistema mundo”, e à sua hegemonia colonizadora, ou se devotam a ideias e ações voltadas à emancipação diante dele e frente a ele.
Uma tendência nega um sentido de realização humana ao longo da história. A outra afirma as ações humanas de uma sempre e crescente superação de si-mesmo, como o próprio acontecer de uma história que, ao ser coletivamente construída, faz com que cada um de seus atores se construa a si-mesmo como uma pessoa livre e criadora de liberdade.
Crer no sentido do sair de “campus” em direção ao “campo”
Amoroso da vida, pensador crítico, pesquisador solidário, participante ativo da vida de seus outros, o educador por isto mesmo deve acreditar que outras ações também o esperam para além dos territórios da academia.
Quando viável – e sempre é viável – ele deve sair de seu “lugar acadêmico” e partir em busca de “entre-lugares de raízes”. Ali estão os universos da vida à sua espera. À espera de que ele venha ali também aprender-e-ensinar, sobretudo quando ele se envolve em alguma frente de ação social e ousa dedicar uma assumida e solidária fração de seu tempo a somar-se com tantas e tantos outros educadores ativos, pensadores ativistas, pensadores-atores.
Enfim, aqueles que ousam ver e crer que este mundo instrumentalmente globalizado não é o que foi destinado a ser a morada de seres humanos. Sigamos acreditando no que gritamos pelas ruas, e não apenas durante os nossos fóruns sociais mundiais: “um outro mundo é possível”. E, quando for a hora, saibamos sair às ruas.
E saibamos acreditar que pelo Mundo inteiro e em cada local onde vivemos, cabe a cada um, a cada uma de nós, às nossas pequenas comunidades utópicas, às nossas redes espalhadas por todo o Planeta Terra e à multidão de pessoas provenientes sobretudo dos povos originários e dos excluídos da terra, a vocação de tornar real este mundo por agora ainda apenas idealizado e sonhado.
Crer no sentido insurgente e emancipador do ofício de ensinar a saber e a pensar
Repito o que disse linhas atrás. Se há um critério absoluto para determinar a qualidade de uma mudança ou transformação social ele está em que ela deve ser sempre mais humanizadora. Deve representar de maneira irreversível um novo acréscimo de valor humano.
Um incremento inesgotável de condições através das quais todas as pessoas possam viver cada vez mais uma vida plena e feliz. Isto é: uma vida de qualidade, criativa, livre, corresponsável e solidariamente partilhada em uma sociedade justa, democrática igualitária, multicultural, não excludente, ousada e aberta à constante mudança.
Em uma sociedade onde a imensa maioria das mulheres e dos homens pertence às camadas sociais populares, não apenas por isso devem ser as pessoas do povo aquelas a quem serão destinados os recursos e os projetos que “de dentro para fora e da periferia para o centro” reverterão a sua própria condição de pobreza, de exclusão e de imposta e injusta marginalidade.
Mais do que isso, pessoas das sociedades tradicionais e das classes populares deverão se tornar agentes ativos e críticos de sua própria transformação; da transformação de seus modos de vida e culturas em direção à transformação da vida social que constroem com suas mãos e seus saberes.
Crer na universalidade do saber e na partilha do diálogo
Devemos crer no saber original que habita o coração e a mente de toda e qualquer pessoa. Ensinar-e-aprender sabendo que cada homem ou mulher, quem quer que seja, é em si mesmo uma fonte original, preciosa e irrepetível se seu próprio saber.
Assim, crer na vocação de todas e todos nós à reciprocidade da vida, do afeto, do sentido e do saber. Crer, portanto, no valor do diálogo, como experiência de quem não impõe informações e conhecimentos, mas se propõe a trocar saberes e dialogar os sentidos e os sabores do aprender. Crer em nossa universal vocação ao diálogo, como o fundamento do que nos faz sermos os seres humanos que somos. Somos seres conectivos, autores-atores de reciprocidades. Criadores de com-sentidos e com-saberes.
Quem quer que sejam as pessoas que encontramos em nossos caminhos, sempre a sua verdadeira vocação é a abertura ao encontro com o outro no diálogo entre seres diferentes em sua igualdade; seres destinados à criação da liberdade e corresponsáveis por si mesmos e pelos seus outros.
Aprender é estar dentro de um tempo interativo de diálogo com o outro. Aprender é abrir-se a um outro para criar com ele a experiência objetivamente solidária (sempre interativa) e subjetivamente pessoal (sempre um gesto único, interior) de descobrir junto e integrar sozinho o milagre do saber.
E educar é saber construir o momento do diálogo dentro do qual educador e educando criam, um-com-o-outro, um-através-do-outro, um saber de construção comum e, ao mesmo tempo, uma descoberta profundamente solitária, imensamente pessoal. Eis o fio do seu mistério.
Crer no ensinar como uma ação ativa de criar saberes
Não somos apenas mentes que adquirem e acumulam informações e conhecimentos para permanecermos como sempre fomos.
Somos sempre seres que transformam o que aprendem e sabem reflexivamente ver, perceber, conhecer e compreender, entre dimensões pessoais e coletivas de partilha do sentimento e da consciência. A formação de mentes autônomas, críticas, criativas e amorosamente dialógicas é a razão de ser do aprendizado, por onde quer que ele se inicie. Para o que quer que ele se destine.
E esta vocação do aprendizado deve ser a razão de ser da educação. Pessoas não aprendem apenas para serem capacitadas através de informações. Aprendem para conhecer. Pessoas não aprendem apenas para acumularem conhecimentos, mas para continuamente processarem saberes ativamente adquiridos como reconhecimento pessoal e interativo de si mesmas, dos outros e do mundo.
Conheço quando faço parte do que é conhecido. Conheço conscientemente quando penso por conta própria e responsavelmente qual o sentido humano do que estou ativamente conhecendo e reflexivamente compreendendo.
O ato de ensinar é o gesto de deixar aprender, de facultar a que se aprenda. É criar as condições para que, passo-a-passo e através de múltiplas situações, onde um professor é apenas um elo em uma complexa cadeia, a pessoa-que-aprende integre no que ela já é – naquilo que já é consciente para ela e já é a sua consciência – os limites do que ela ainda não é.
E aprender-e-ensinar é a exata aproximação, a identidade e a diferenciação entre as minhas próprias diferenças e a realidade vivida por mim. Uma dupla realidade. A realidade interior que me constitui e que se renova, ao se aventurar a transformar-se de agora para sempre. A realidade interior que eu não-sou, e que se integra em mim quando eu aprendo não tanto um saber, mas a saber, através de aprender um novo saber.
Uma das decorrências de uma mente consciente através do aprendizado em uma educação libertadora, é a consciência de que o mundo em que vivemos foi e segue sendo construído através da contínua e compartida ação de pessoas e de grupos humanos.
O mundo em que vivemos é uma criação humana. E, se em um momento de sua história ele não corresponde a ser como deveria ser, um território de partilha de uma vida livre, emancipada solidária e, enfim coletiva e universalmente feliz, cabe a nós, mulheres e homens da vida de todos os dias, a tarefa de, juntas e juntos, nos unirmos para lutar em nome de sua transformação.
Crer que aprender é uma atividade humana sem fim. Somos seres sempre imperfeitos e inacabados, mas somos, por isso mesmo, sempre aperfeiçoáveis. E somos inesgotáveis.
Crer no poder emancipador do saber
Frente a toda a ideologia colonizadora que por todos os meios e modos difunde a ideia de que o único valor do saber escolar reside na competência domesticada e destinada ao mercado, crer que existe no saber de quem se educa um poder que emancipa a mente, liberta pessoas e transforma sociedades. Tudo o que um dia mudou algo ao longo da história, nasceu de um conhecimento que alguém, singular e plural aprendeu a saber.
Entre educadores saibamos dizer com esperança estas três frases que se seguem e completam como um ousado silogismo.
A educação não muda o mundo.
A educação muda pessoas.
Pessoas mudam o mundo.
Este escrito e a releitura de um documento anterior. Eu o retrabalhei para ser lido durante a generosa cerimônia de outorga do Título de Doutor Hononis Causa pela Universidad Nacional de Lujan, na Argentina, no dia 8 de setembro de 2017.
Uma versão foi também publicada em Revista historia de la educación latinoamericana, de la Uptc – Vol. 21 No. 33, julio-diciembre 2019 – ISSN: 0122-7238 – pp. 277 – 291.
Carlos Rodrigues Brandão (1940-2023) Poeta e Educador popular, amigo e inspirador da Pluriverso. Mestre em Antropologia (UNB), doutor em Ciências Sociais (USP), livre docente em Antropologia do Simbolismo (UNICAMP), pós-doutor na Universidade de Perugia e na Universidade de Santiago de Compostela. A sua obra, em parte disponível no site A partilha da vida, encontra profunda ancoragem nos saberes das classes oprimidas, e naquela que ele chamou de “cultura com memória”.