ISSN 2764-8494

ACESSE

Outras Educações
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Crianças, educações e a cidade: o brincar como luta encantada

No Brasil, assim como em grande parte dos territórios globais, a maioria da população vive nas cidades. Cheias, barulhentas, poeirentas, com enorme quantidade de informação para tudo que se olhe. Cada metro quadrado é intensamente disputado por fenômenos mundiais, que de forma exponencial, privatizam os espaços, tornando as ocupações e os fazeres formas mercantis, onde melhores condições econômicas são proporcionais a maiores índices de qualidade de vida.

No meio da correria cotidiana, as crianças, geradas dentro das diversas camadas sociais, exercem também seus papeis dentro da sociedade ocidental, que já inicia seu processo de preparo à vida adulta cidadã desde o nascimento.

E o que prevê a tal cidadania? Seria a ocupação dos espaços no mercado de trabalho, esse, cada vez mais volátil? A posse ou usufruto de bens essenciais, como moradia, alimentação, água, saúde? Direitos e deveres em eleger seus representantes numa proclamada democracia? Saneamento básico? Educação? Seria a cidadania hoje uma adjetivação concedida a quem se insere no meio como consumidor de bens?

Criança brinca com rã em área natural de cachoeira, Grajaú, RJ.
Criança brinca com rã em área natural de cachoeira, Grajaú, RJ.

Educação para cidadania: será?

Ao nos depararmos com tantos problemas na atualidade, principalmente de ordens sociais e ambientais, seria sensato nos perguntar se a educação para a cidadania tem se mostrado suficiente.

Digamos que, numa sociedade capitalista, ser cidadão detentor de direitos e deveres se resumir em parte ao exposto, faz muito sentido que assim seja. E esse sistema se articula muito bem para que tudo dê certo em seus planos. A educação que chamamos de formal se insere nesse mesmo sistema de moer gente, física e subjetivamente, ao sugar corpos, tempos e mentes em prol de um projeto de nação que se submete ao capital.

Consideremos ainda que mesmo os direitos básicos proclamados em nossa Carta Magna são negados a grande parte da população que, invisibilizada, sequer pode se considerar cidadã, já que não inserida nessa economia de mercado que gera tanta desigualdade. Sem que ao menos conheçam seus direitos, muitas pessoas permanecem às margens e, sem uma educabilidade que as leve ao questionamento de paradigmas sociais, não se vislumbram a superação de suas opressões.

Então, no que poderia consistir uma educação que se aproxime das diversas realidades, que instigue a pensar o cotidiano e outras possibilidades? Se vivemos nesse mundo, nessa cidade que muda a passos largos, sendo cada vez mais modificada por ações humanas que só consideram alguns humanos como parte de sua humanidade; onde passamos com horários sempre apertados a chegar no tempo marcado, esse tempo do relógio que nos faz reféns, e nem olhamos pro lado, nem olhamos mais para os outros, para o outro…

Penso que não temos uma fórmula mágica dentro desse sistema. Mas o que sabemos é que é aí que ele opera, nas dinâmicas mundializadas que incidem com força pelo desmantelamento de nossas capacidades de nos olharmos com solidariedade, investindo no esfacelamento do comunitário ou, como diria Grosfoguel, num “comunitaricídio”.

O que nos falta? Conexão conosco mesmos e entre nós, considerando seres vivos e não vivos, parece um bom caminho. Se somos interdependentes, se nossa fisiologia nos preparou por milhares de anos para o cuidado no convívio, e vimos nos apartando desse comportamento num curto intervalo de tempo, gerado por crescente individualização, vivemos uma desconexão temporal que se dá de maneira abrupta.

Estamos adoecendo junto com nossa terra, já que somos intrinsecamente ligados a ela e nossas ancestralidades, sejam animais, plantas, rios, montanhas… mesmo que por vezes esqueçamos e estejamos apartados dela.

Se antes o trabalho se dava para a manutenção da vida, hoje ele objetiva a acumulação de bens, proclamados sinônimos de felicidade. Ideia vendida e comprada no ocidente que é incompatível com a sustentação da vida no planeta em todas as suas formas.

Remeto às palavras de Luiz Rufino, para quem a principal tarefa da educação é a descolonização. E nos educamos por toda a vida, somos seres incompletos e fazemo-nos em trocas com outros indefinidamente. Mas retornemos às crianças. Que educações vimos oferecendo aos nossos aprendizes recém inseridos nesse mundo, cada dia mais frenético, cronológico? E como eles e elas vêm recebendo o que vem sendo oferecido?

Se falarmos na educação escolar, que é institucionalizada e, por isso, vista como principal lócus de aprendizagem pelo senso comum, podemos aqui, mais uma vez, citar uma desconexão temporal, que gera uma perda de sentido. Currículos fechados, conteúdos extensos, horários rígidos e espaços reclusos que desconsideram os corpos como potências.

Criança brinca em momento oportunizado em área externa em jardim na escola da rede municipal do Rio de Janeiro.
Criança brinca em momento oportunizado em área externa em jardim na escola da rede municipal do Rio de Janeiro.

Esperançar para o amanhã

Num ensino que deixa a vida lá fora a cada vez que se cruza um portão, num mundo com informações velozes e tantas formas de entretenimento, e onde parte da juventude não mais projeta seu futuro, já que este revela muitas incertezas (IPEA, 2021), não seria o momento de falarmos na construção do presente, e que este gere um esperançar para o amanhã?

Para se falar em presente com as crianças, é necessário estarmos com elas aqui e agora. E os fazeres que um corpo e uma mente infantis requerem incidem no lúdico. Ao permitirmos um instante de ociosidade a uma criança, a imaginação flui e ela simplesmente brinca.

Assim, defendo aqui que, nesse tempo da metrópole que exerce seu poder sobre nós, sempre rodando em círculos buscando algo que nem sabemos o quê, mas que serve sempre a interesses escusos e maiores; não existe nada mais contracolonial do que uma criança que brinca, pois ela o faz a contragosto da ideia colonizadora de que a vida tem de ser produtiva e obedecer a tempos e regras impostos por outrem. Na brincadeira, a criança inventa a si e ao seu mundo, e o tempo obedece às regras de Kairós .

E onde acontece o brincar no meio da cidade alvoroçada? Se na escola os tempos e espaços são suprimidos, cedendo lugar quase sempre a um aprendizado cartesiano que não prevê as capacidades do corpo em seus processos; como se dá essa dinâmica nos outros espaços da vida? Como são ocupados os tempos das crianças quando estão fora da escola?

Ainda que consideremos as diferentes infâncias, determinadas por raça, gênero e classe social, podemos dizer que no mundo ocidental metropolitano a situação de encolhimento de espaços e momentos do brincar é progressiva. Os motivos variam, desde a crescente ocupação do tempo no preparo para a vida adulta, obrigações com serviços domésticos, demandas familiares, trabalho infantil, falta de segurança nos territórios, supressão de áreas naturais e escassez de espaços destinados ao lazer.

Nessa perspectiva, embora a incidência colonial adentre as esferas nas vidas infantis, os efeitos sempre são mais intensos para as pessoas mais vulnerabilizadas socialmente. Se o brincar pode ser pensado como o principal fazer da criança, e considerando que todas ou quase todas brincam, mesmo sob diferentes entraves e contextos, para os que vivem em territórios conflagrados, ser criança pode significar um risco.

Nesses locais, onde a vida comunitária ainda é uma realidade, o brincar acontece nas ruas, em grande parte sob olhares de vizinhos, em espaços nem sempre apropriados ou seguros. Assim, um corpo brincante pode vir a ser, a qualquer momento, um alvo.

Dados da plataforma Fogo Cruzado mostram, que, desde 2016, 616 crianças e jovens foram baleados no Rio de Janeiro, dos quais 278 vieram a óbito. Um em cada três foram vítimas de balas perdidas. Estavam transitando pela rua a caminho da escola ou mesmo dentro da instituição, brincando no quintal ou nas ruas próximas a suas residências. Quase metade das ocorrências se deu durante operações policiais em comunidades da cidade, principalmente na Zona Norte, com maior ênfase ao Complexo do Alemão.

Assim, precisamos nos indignar que o direito a ser criança e o próprio direito à vida seja determinado desde o nascimento por imperativos de um sistema excludente, no qual algumas vidas valem mais que outras. A infância pobre reivindica diariamente seus direitos a viver seu tempo, a habitar e conviver em seus territórios de pertença e, mesmo que isto possa significar a interrupção de sua passagem por este planeta, eles brincam.

A brincadeira, assim, se configura numa luta para a infância periférica. Conforme demonstrado em minha recente pesquisa de mestrado e corroborado por outros estudos, como o de Cláudia Oliveira, nos locais onde residem populações de estratos econômicos inferiores, a maioria das crianças possui experiências mais acentuadas nos espaços públicos, a contragosto da privatização e individualização que insistem em dominar.

Persistimos, então, na ideia de que os alvos são corpos específicos, que gingam e brincam, sempre na tentativa de desviar da ordem dominante, que mira seus intentos e projéteis sob a tutela de um estado que sabe quem pode acertar sem passividade de punição.

“Na moderna biopolítica, o soberano é aquele que decide sobre o valor ou não valor da vida como tal”

Agambem

É urgente que se pensem políticas públicas para e com as infâncias e juventudes para além das educacionais ao nível formal. As crianças são seres de direitos em sua totalidade, e é imprescindível que tenham garantias de poder viver em seus lugares em seu tempo, com qualidade de vida.

Não pode ser aceitável em qualquer sociedade que se naturalizem tantas vidas precocemente perdidas, ou que se pensem que a simples privatização dos espaços e enclausuramento das infâncias com extensão do tempo escolar resolva o problema, que é complexo e envolve muitas instâncias sociais e estatais.


Maria Emília Martins é professora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, mestre em Educação e pesquisadora do Laboratório de Ações e Pesquisas em Educação Ambiental/ LAPEAr – UNIRIO.

*Fotos enviadas pela autora.

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