ISSN 2764-8494

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Direito(s)
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Maternidade e trabalho não remunerado: de quem é essa pilha de fraldas?

A percepção da licença-maternidade como um privilégio do qual o homem não goza é diametralmente oposta à realidade cotidiana em uma casa onde vive um recém-nascido. Sem a possibilidade de contar com a ajuda do companheiro ou de terceirizar o cuidado, assumir sozinha as tarefas que envolvem o bem-estar de um ser humano tão frágil e vulnerável como um bebê – incapaz de realizar por conta própria qualquer ação que não seja chorar, defecar e urinar – pode chegar a ocupar grande parte do dia de quem estiver encarregado de executá-las.

Na prática, isso significa que as pessoas que têm direito a maior tempo de licença depois do nascimento de um filho são as que arcam com grande parte do trabalho braçal que demanda para que o rebento sobreviva. E sobreviver é, em última instância, a única ação verdadeiramente importante se pensarmos como espécie.

Economia do cuidado

Salvo no caso da amamentação, homens e mulheres estão em igualdade de condições para realizar todas as tarefas que envolvem o cuidado. Desde trocar fraldas até oferecer carinho e segurança. Então, por que eles não são incentivados a passar mais tempo em casa e se responsabilizar pela sobrevivência de seus descendentes nos primeiros meses da vida dos filhos?

Esse é um ponto fundamental para a economia feminista, que, especialmente nas últimas duas décadas, sistematizou e visibilizou a dimensão do trabalho doméstico não remunerado e seu impacto no sistema de produção de sociedades capitalistas.

Ao analisar a desigualdade entre gêneros a partir do conceito de “economia do cuidado”, que engloba todas as tarefas que possibilitam a reprodução da força de trabalho, acadêmicos evidenciaram que, quando se trata de avanços e retrocessos na regulação do trabalho, homens e mulheres aparecem em situações completamente diferentes ao longo da história.

Metade da população mundial – as mulheres – se dedicou quase exclusivamente a cozinhar, lavar, passar, parir, trocar fraldas e acordar durante a noite até algumas décadas atrás. No entanto, esse esforço imprescindível é silenciado ao ser raras vezes incluído como variável em análises econômicas tradicionais.

Mesmo em momentos históricos em que mulheres tiveram maior presença em postos de trabalho no mercado, a dupla ou tripla jornada não foi contabilizada como tal em termos de remuneração. Sem aposentadoria, licença por motivos de saúde ou férias, o trabalho das donas de casa é tão fundamental quanto desprezado nas economias capitalistas.

A concentração dos trabalhos de cuidado por mulheres permitiu, até o final do século XX, que o espaço público – mercado de trabalho, vida política, espaços de ócio – fosse território hegemônico de homens. Estes, ao estar eximidos das responsabilidades domésticas, puderam se dedicar a trabalhos remunerados, logo, acumularam mais propriedades e capital às custas de suas esposas, mães, irmãs e filhas, que fizeram por eles e por elas as tarefas não remuneradas das quais não podemos prescindir como espécie.

Ainda com os avanços na luta pela igualdade entre gêneros, entre os quais está a diminuição da distância entre os tempos dedicados por homens e mulheres ao cuidado doméstico, estudos como o da socióloga econômica María Ángeles Durán, da Espanha, e da economista Corina Rodríguez Enríquez , da Argentina, revelam que as mulheres ainda concentram a maior parte do trabalho de cuidado.

É difícil estabelecer o valor do tempo dedicado ao cuidado dos filhos, não só porque é difícil estabelecer a jornada de trabalho – o cuidado é uma atividade que dura 24 horas por dia e 7 dias por semana -, mas também porque envolve uma dimensão sentimental. A maternidade ensina que é possível amar profundamente um ser e, ao mesmo tempo, desejar ansiosamente a sua ausência.

Companheiro bebê

Quando se está sobrecarregado com uma tarefa, é natural que ela seja pouco prazerosa, irritante, angustiante, mesmo que decorrente de uma escolha e direcionada a alguém a quem só se deseja o bem. É no escuro do quarto, do banheiro, do corpo, da mente, que o lado negativo de ser mãe aflora e, por vezes, toma conta da casa.

De repente, o sentido comum sobre a maternidade ser algo maravilhoso – reforçado por sua idealização em quase todos os espaços de sociabilidade e, em especial, por meios de comunicação, redes sociais e círculos familiares -, topa com a realidade, com a solidão extrema de ver-se preterida em trabalhos remunerados, de ver-se empurrada a uma vida doméstica pouco instigante, de ver-se soterrada por fraldas sujas de cocô.

E é aí que a maternidade se torna um fardo. Um fardo eterno, o que é mais angustiante. Um fardo que todas as mulheres que decidiram dar à luz em uma família heteronormativa carregaram.

Mas esse fardo não pesa porque o bebê acorda, come, faz cocô, vomita, toma banho, chora e pede colo. Pesa porque na atenção às suas necessidades e desejos, o trabalho é distribuído de forma desigual entre homens e mulheres. O fardo tem origem na desigualdade de gêneros, não na maternidade.

E é ao reconhecer isso, não ao romantizar o sofrimento como um degrau à santidade, que ser mãe deixa de ser prisão e passa a ser potência. Esse reconhecimento escancara o cinismo que rodeia o mito do amor/cuidado materno como natural, instintivo e ineludível, e transforma o fardo em luta, o filho em companheiro e o pai presente em aliado.

Ao exigir a divisão equitativa das tarefas de cuidado, a compensação por realizar essas atividades sozinha, o reconhecimento social e econômico pela contribuição inestimável de cuidadoras para a acumulação de riqueza, a luta por uma sociedade mais igualitária avança. E nela as crianças ocupam um lugar de sujeito revolucionário também, já que deixam de ser obstáculo e passam a ser protagonistas de mudanças profundas na organização social.

Subverter a maternidade vai muito além de queixar-se dela. Esse é o verdadeiro desafio.

Nota da editoria:

Atualmente, no Brasil, o tempo de licença-maternidade para mulheres é de 120 dias. Para homens, a licença-paternidade é de 5 dias, podendo ser estendida por mais 15 dias.


Aline Gatto Boueri é jornalista e mestranda em estudos latino-americanos. Carioca, mora em Buenos Aires desde 2008 e morre de saudade do mar.

Esta matéria foi publicada inicialmente na Revista Geni.

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