ISSN 2764-8494

ACESSE

Volume III
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Frei Betto: “Paulo Freire não cabe na Escola formal”

Recentemente, o polêmico cancelamento de uma palestra do frade dominicano Frei Betto em Caxias do Sul, RS, reacendeu os debates sobre como o posicionamento reacionário de familiares pode influenciar na autonomia escolar. A palestra, promovida pelo Fórum das Entidades e Movimentos Sociais, com o título “Fomes do Brasil e Esperanças de Futuro”, aconteceria no auditório do Colégio São José e não era um evento interno.

Entretanto, atendendo à reivindicação dos familiares, que alegaram ter o palestrante posição contrária “aos valores que acreditamos ser importantes e essenciais na educação de nossas crianças”, a direção da escola voltou atrás e suspendeu a locação do seu auditório. O evento foi realizado no teatro da Universidade de Caxias do Sul (UCS) com lotação máxima.

Diante dessa situação, nós, membros do coletivo Pluriverso, reconhecemos a oportunidade de revisitar as ideias de Frei Betto sobre educação, sua defesa de abordagens pedagógicas críticas e cidadãs, além de sua estreita relação com Paulo Freire, com quem coescreveu um livro, e com a metodologia freireana. Apresentamos aqui uma entrevista concedida ao jornal argentino La Capital em 2021, que, devido à importância do tema e à obscuridade dos tempos atuais, mantém-se eterna e essencial.

“Quem diz amar a Deus sem amar o próximo está mentindo”

A entrevista, realizada via Zoom pelo jornalista argentino Matías Loja, com o frade dominicano nascido em Minas Gerais e autor, entre outros, de Fidel e a religião, O dia de Ângelo e Por uma educação crítica e participativa, ocorre no contexto do centenário do nascimento de Paulo Freire, a quem ele lembra como um homem carismático, humilde, com os pés no chão e um cristão revolucionário “interessado em fortalecer a consciência política e cidadã do povo”.

Teólogo, educador popular ligado às comunidades eclesiais de base e discípulo de Freire – seus textos estão disponíveis na sua livraria virtual – para Betto, a pedagogia freireana não pode ser aplicada integralmente no ensino formal, porque seria como “colocar um elefante em uma caixa de fósforos”. E afirma que todo educador deve questionar o objetivo final de sua tarefa, se é “mera produção de mão de obra para a reprodução do sistema desigual” ou está formando pessoas para construir “outro mundo possível”.

O frade dominicano Frei Betto defende que não é possível aplicar completamente a pedagogia freiriana na escola formal, porque a Educação Popular segue o ritmo dos educando e não do calendário escolar. Paulo Freire levou os oprimidos a conquistarem sua autoestima política e seu protagonismo, assumirem a direção do processo emancipatório.

Como conheceu Freire?

Conheci a metodologia pedagógica de Freire antes de conhecê-lo pessoalmente. Morava no Rio de Janeiro no início dos anos 60 e a metodologia tinha chegado lá através do Movimento de Educação de Base (MEB) ao qual eu estava vinculado. Pude adotar a metodologia em um trabalho com operários de uma fábrica de caminhões perto do Rio de Janeiro.

Depois que saiu da prisão, onde Paulo Freire esteve devido ao golpe militar, ele foi se refugiar na embaixada da Bolívia no Rio de Janeiro. Em setembro de 64 fui visitá-lo na embaixada e nos conhecemos pessoalmente. Depois nos encontramos quando ele voltou do exílio para o Brasil em 1980. Passaram muitos anos, mantivemos algum contato por correspondência, através de amigos, mas eu continuava adotando sua metodologia, sobretudo na segunda metade dos anos 70, quando fui morar em uma favela em Vitória, na província de Espírito Santo, e também em meu trabalho com as comunidades eclesiais de base em todo o Brasil.

Fui um discípulo muito fiel de Paulo Freire. E quando ele voltou do exílio veio morar em São Paulo, perto do convento em que eu moro. Com muita frequência me convidava para almoçar em sua casa e lá tínhamos conversas muito boas. Dessas conversas surgiu o livro Essa escola chamada vida.

Capa do livro "Essa escola chamada vida"

Contou que conheceu o método Freire nessa fábrica de caminhões. Como o descreveria?

Implicava saber ler o mundo antes de aprender a ler textos. Isso veio da metodologia da Ação Católica Brasileira, um movimento cristão progressista que tinha o método de ver, jogar e agir. Paulo Freire era um cristão que soube adaptar a metodologia marxista sem nenhum problema para sua fé cristã. Adotou esse método indutivo onde quanto mais se conhece o contexto melhor se compreende o texto. Um exemplo do trabalho que fazíamos na fábrica: projetávamos diapositivos com fotos da proximidade e da própria fábrica, e aos operários fazíamos perguntas:
— Nesta foto, que coisas o ser humano não criou?
— O monte, o céu, as árvores, os pássaros.
— E que coisas o ser humano criou com seu trabalho?
— Os caminhões, o prédio, a estrada, as bicicletas.
— E de onde vem a matéria-prima para produzir tijolos, ferro para os caminhões ou madeira para a cerca?
— Da natureza.
Aí vem o conceito de cultura, a ação humana sobre a natureza. Mas depois perguntávamos:
— Que veículos fazem vocês?
— Fazemos caminhões.
— E vocês têm caminhões?
— Não, temos bicicletas. Os caminhões são muito caros, custam cerca de 40 mil dólares. Para ter um caminhão, é preciso trabalhar décadas.
Aí vem a concepção de mais-valia, as relações de classe, as contradições, a mercadoria, a exploração do trabalho operário. A partir daí, era muito fácil tirar palavras geradoras como exploração, opressão, capital, natureza, cultura, para começar o processo de alfabetização.

Qual era o significado das palavras geradoras?

São as palavras centrais do mundo cultural do operário, do camponês ou do pescador. Palavras que a partir daí geram um vocabulário e, ao mesmo tempo, vai se desconstruindo cada palavra. Por exemplo, a partir da palavra “habitação” pode-se retirar “vida”, “vitalidade” e muitas expressões da palavra “casa”. Estas são as palavras geradoras, aquelas que são mais comuns no vocabulário de uma pessoa que está sendo alfabetizada.

O que significa aprender com o povo?

Este é um conceito muito importante na metodologia de Paulo Freire. Significa que ninguém é mais culto do que outro, há culturas diferentes e socialmente complementares. É uma falsidade pensar que uma pessoa com doutorado na universidade é mais culta do que alguém que nunca foi à escola. É um conceito falso a ideia de que a cultura está associada à escolaridade.

Um exemplo: um astrofísico com todos os títulos universitários e científicos tem uma cozinheira chamada Maria, que nunca foi à escola, mas que tem uma cultura culinária que o astrofísico não possui. Se fizermos um balanço de quem depende mais da cultura do outro, certamente Maria pode passar sem a cultura astrofísica de seu patrão, mas ele nunca pode passar sem a comida de Maria.

Qual é o significado de Freire na história da educação popular e qual legado ele deixa?

Posso dizer que sem Freire, não haveria Lula, Rafael Correa ou Evo Morales. Todos esses líderes populares que surgiram na América Latina são fruto da pedagogia de Freire, porque levou os oprimidos a conquistarem sua autoestima política e seu protagonismo. Antes de Freire, os camponeses e trabalhadores progressistas eram liderados por uma vanguarda de intelectuais de esquerda. A vanguarda do proletariado nunca era formada pelos próprios proletários. A partir de Freire, são os próprios oprimidos que assumem a direção do processo emancipatório. Esse é o sentido mais profundo de sua pedagogia.

Capa do livro O dia de Ângelo.

No O Dia de Angelo, você disse: “Detesto salas de aula, hambúrgueres e pessoas que se gabam de enganar os outros”. Você ainda pensa assim sobre as salas de aula?

Sim, por isso fui trabalhar com educação popular. Porque a pedagogia de Freire não pode ser colocada no ensino formal. Pode-se colocar um ou outro aspecto, pequenos ensaios se possível. Mas colocar a pedagogia de Freire na escola formal é o mesmo que colocar um elefante em uma caixa de fósforos. É impossível, porque na educação popular dependemos do ritmo dos educandos e não do calendário do ano letivo. Sempre me recusei a ser professor em escolas formais.

Fiquei muito pouco tempo em algumas escolas, para cobrir alguma lacuna que havia, mas gosto de trabalhar com as pessoas simples das favelas e movimentos populares. Lá, não temos a camisa de força de todas as formalidades do ensino burguês, porque toda a nossa estrutura de ensino é muito elitista. O que Paulo Freire denunciou como educação bancária, o enfiar nossos saberes e conhecimentos na cabeça das pessoas.

De qualquer forma, costumava visitar escolas. Quando o fazia, gostava de investigar algo em particular?

Nunca tive a pretensão de levar a metodologia de Paulo Freire para as escolas formais. Tinha, sim, a pretensão de questionar em dois aspectos: primeiro, sempre perguntava qual era o lanche dos estudantes, porque, em geral, eram os menos indicados para uma boa saúde. Com excesso de gorduras, açúcar. Muitas crianças não gostam de salada, então perguntava por que não usavam um pedacinho de terra para fazer uma horta, porque essas crianças ao fazer a colheita vão superar os preconceitos que têm. E a outra pergunta que sempre fazia era, como é a educação sexual na escola?

Em geral, vem uma professora ou professor a dizer que a educação sexual é assim e assado. E lhe digo: “Bem, você me perdoará, mas isso é educação de higiene corporal para evitar doenças sexualmente transmissíveis, porque em nenhum momento disse duas palavras fundamentais: amor e afeto”.

Se não é educação para o amor e o afeto está equivocada. Mas não tenho outra pretensão, estou convencido de que se podem inserir aspectos da metodologia freireana na escola formal, mas não se pode adotar totalmente, porque a escola formal é uma compressão dessa metodologia e não permite desenvolvê-la.

Foto de Frei Betto discursando
Foto: Marcelo Bustamante / La Capital

Como era pessoalmente Paulo Freire?

Era um homem muito humilde, no sentido etimológico da palavra. De humus, de ter os pés na terra. Tinha consciência de seu valor como pedagogo, de seu trabalho a nível mundial, sobretudo nos anos em que esteve fora do Brasil. Quando foi ao Conselho Mundial das Igrejas em Genebra, pôde viajar a todos os continentes, levando sua metodologia a povos muito pobres.

Era um homem sem pretensões de ser importante ou de riqueza. Estava sobretudo interessado em fortalecer a consciência política e cidadã de nosso povo. Paulo Freire era um revolucionário no sentido profundo da palavra. Era um cristão revolucionário, e seu sonho era justamente ver um Brasil emancipado das opressões, com muito menos desigualdade social, com as pessoas em condições de ter seus direitos humanos fundamentais assegurados, como alimentação, saúde, educação, cultura e trabalho.

Era uma pessoa muito simples, não criava nenhuma barreira para se aproximar dele, mas era um homem carismático, sem nenhuma dúvida. Sempre que ia dar aula na Universidade Católica de São Paulo tinham que passar para um salão, porque não estavam apenas seus alunos, mas chegavam estudantes de outros cursos interessados em suas palestras.

Existe algum livro, anedota ou frase de Freire que o acompanhe mais nestes tempos?

Muitos. Ele usava muito uma palavra que não sei como traduzir, que é boniteza, uma expressão do nordeste do Brasil. Ou seja, algo muito bonito, delicado. Dizia que na educação é preciso imprimir a boniteza. Também dizia com outras palavras que a mente pensa onde os pés pisam. Ou seja, você não pode ter empatia pelos oprimidos se vive o tempo todo no mundo dos opressores.

Se não tem conexão com o mundo dos mais pobres, dos empobrecidos. Paulo era uma pessoa muito realista nesse sentido, de uma epistemologia que tinha como ponto de partida o mundo dos oprimidos. Isso era muito frequente em toda a sua obra: Pedagogia da autonomia, Pedagogia da liberdade e principalmente Pedagogia do oprimido, que é sua obra mais clássica.

Neste momento em que a América Latina vive um avanço de ideias reacionárias e discursos racistas, onde alguns afirmam que “a rebeldia” parece ser de direita, o que Freire pode contribuir?

Creio que um dos problemas da América Latina, especialmente enfrentado pelos governos progressistas da América do Sul nas últimas décadas, é que formamos muitos militantes de base, mas essas pessoas foram absorvidas pelas estruturas governamentais. Ou seja, à medida que líderes como Chávez, Maduro, Morales, Correa, Lula ou Dilma ocupavam espaços no governo, era necessário ter quadros confiáveis, com afinidade ideológica com a proposta do governo.

Com isso, deixamos espaços vazios nas áreas populares, e esse vazio foi progressivamente ocupado – no caso do Brasil – por três vertentes: fundamentalismo religioso, narcotráfico e milícias, gangues paramilitares criminosas com as quais Bolsonaro tem excelente relação. Nossa principal tarefa é voltar ao trabalho de base.

Não há possibilidade de emancipação da América Latina e dos povos sem esse trabalho de base, em formação, conscientização, organização e mobilização. São as quatro palavras que estão na obra de Freire para criar um novo projeto de sociedade. Para dar consistência à nossa esperança de um futuro melhor.

O que você diria aos que militam nesses movimentos de base, que disputam o futuro de muitos meninos e meninas com o narcotráfico?

Sim, e principalmente em situações em que esses meninos e meninas não têm escolaridade, acesso à escola e ao emprego. Então, essas pessoas se tornam muito vulneráveis a qualquer tipo de associação criminosa e vão por esse caminho, principalmente com esse fenômeno das drogas. Não acredito em nenhuma esquerda que não tenha em seu projeto um trabalho de educação popular.

“Colocar a pedagogia de Freire na escola formal é o mesmo que colocar um elefante em uma caixa de fósforos. É impossível.”

Que mensagem você daria aos professores que estão dentro ou fora do sistema educacional?

Se são educadores, devem se perguntar: educar para quê? Educar para o mercado capitalista, educar meninos e meninas para se tornarem mão de obra sofisticada, tecnológica e cientificamente bem preparada, mas sem nenhum projeto de sociedade na cabeça? Ou seja, mera reprodução desse sistema de desigualdade, exploração, desta era que muitos chamam de antropoceno, mas eu chamo de capitaloceno. Porque a hegemonia mundial está concentrada nos privilégios do capital e não dos direitos coletivos.

Acredito que cada professor, mestre ou mestra deve se perguntar qual é o objetivo final da minha educação, se é apenas produção de mão de obra para a reprodução do próprio sistema ou se estou preparando pessoas para buscar outro mundo possível, uma alternativa a essa sociedade que cada vez mais aumenta a desigualdade social, a devastação socioambiental e tantos outros problemas que o mundo enfrenta hoje. Agravados com essa terrível pandemia que certamente tem a ver com o desequilíbrio ambiental, porque a cadeia predatória da natureza é quebrada com a interferência humana e os animais acabam nos passando suas doenças.
Que utopias perseguir hoje?

A utopia que me move é muito simples: acredito que não há futuro para a humanidade se não compartilharmos os bens da terra e os frutos do trabalho humano. É como uma família, onde as pessoas são muito diferentes e têm diferentes talentos e inteligências. Mas nenhum pai ou mãe concede a um filho direitos que não concede a outro. Todos têm os mesmos direitos e oportunidades. Este é o meu projeto de sociedade, muito simples.


E em que me inspirei? Pela prática e a palavra de Jesus nos Evangelhos. Jesus veio propor não exatamente uma religião e muito menos uma igreja, mas um projeto político e civilizatório que ele chamava de reino de Deus. Que a igreja colocou em cima, mas na cabeça de Jesus estava na frente. Por isso foi brutalmente assassinado, porque falar do reino de Deus no reino de César é o mesmo que falar de democracia na ditadura ou de socialismo no capitalismo.

Hoje estou convencido de que provavelmente não vou desfrutar disso, mas temos que viver para sermos sementes desse novo projeto de sociedade. Que todas as pessoas tenham o direito não apenas de nascer com dignidade, mas de viver com dignidade. É uma coisa muito simples que continuo chamando de socialismo.
As pessoas dizem que o socialismo não existe ou que cometeu muitos erros. Olha, a igreja teve a inquisição e agora tem pedófilos, mas eu não abandono a proposta, porque em si mesma é muito boa e positiva. Sempre teremos que fazer nossas ações dentro de alguma instituição, o importante é lutar para mudá-las.

A utopia continua sendo esse horizonte que Eduardo Galeano falava, o horizonte que vemos na janela, que podemos caminhar na sua direção, mas nunca vamos alcançá-lo. E para que serve o horizonte? Para nos fazer caminhar.

Assista aqui o vídeo da entrevista completa (em espanhol)



Matías Loja – Publicado em 18/09/2021 no “LACAPITAL”

(*) Tradução e revisão Claudio Barría Mancilla

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